Sem tons de cinza: escritoras feministas ressignificam a literatura erótica

Mulheres ingênuas e submissas cuja única função é orbitar em torno dos membros de homens poderosos, ricos e sedutores. Se nas últimas décadas essa foi a tônica da literatura erótica, hoje essas personagens ganham personalidade, opinião e atitude nas mãos de escritoras feministas. Ao mesmo tempo, elas ajudam leitoras a compreenderem sobre consentimento, autonomia e abuso.

Quando deu vida a Sara - uma mulher recém divorciada que embarca numa jornada de autoconhecimento, prazer e liberdade -, Josy Stoque, de 40 anos, vivia algo parecido. Ela tinha acabado de sair de um casamento de 10 anos com o primeiro parceiro e estava tentando lidar com o que vinha na sequência: voltar para a casa da mãe, na cidade de onde tinha saído anos antes, e um novo emprego.

Em meio à adaptação, ela decidiu que viveria experiências que a religião e a timidez não lhe permitiram quando era mais nova. "Fiz swing, menáge, e foi nesse momento que me descobri bissexual", disse Josy. Como parte desse processo, veio também as decisões de escrever um livro erótico, de explorar a própria sexualidade e de narrar sobre ela. Nasceu assim "Puro Êxtase", sua obra de estreia, publicada de forma independente e em formato de ebook na Amazon. Foi um sucesso estrondoso e lhe rendeu um contrato com a editora Astral Cultural.

Olá, sou Márcio. Qual é o seu nome? - Eu me apresento acima da música alta, ele se dobra,
seu corpanzil faz sombra sobre mim, e me beija demoradamente no rosto.

- Muito prazer, Sara, gostaria de dançar?

É exatamente o que eu quero. Sua aproximação e o seu pedido são bem clichês, mas quer saber? Não vim ao bar para viver um conto de fadas. Estou aqui para me divertir, beber, paquerar, beijar e dançar.

(...)

Estou à mercê do desejo, do meu, do dele. Deito-me de barriga para cima no assento e ergo o quadril para que o seu pênis me penetre fundo.

(Trecho do livro Puro Êxtase)

O que elas gostam

Mulheres com autoconfiança e que dizem aos parceiros o que gostam e o que querem são as narrativas que mais fazem sucesso entre as leitoras que procuram os livros por uma ótica feminista. As escritoras contam que quanto mais a personagem trata o sexo com liberdade e sem tabu, guiando os parceiros pelo próprio corpo e desejo, mais chance do livro ser compartilhado e também lido.

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"Acredito que a leitura desses romances seja um pouco por identificação e outro pouco por catarse. Nem todas têm coragem ou oportunidade de fazer tudo o que as personagens fazem". Os livros permitem que elas entrem em contato com um prazer que, por muitas vezes, foi negado ou desencorajado.

Estico-me e tiro a camisinha da bolsa, rasgo o envelope enquanto me movo contra ele, apenas uma fina camada de tecido nos separa. Márcio aperta as minhas coxas, puxo o seu pênis para fora da cueca e o visto, ele pulsa na minha mão.

(Trecho do livro Puro Êxtase)

Ousadia e quebra de paradigma também abrem caminho na literatura erótica. Entre os livros mais vendidos de Josy Stoque estão o "Eu Nunca", em parceria com Mila Wander, que fala sobre uma mulher bissexual e livre que decide se envolver com um homem virgem e religioso, e o livro "Eduardo, Fernando e Eu", que vai contra a narrativa do trisal clássico, e coloca uma mulher com dois homens.

Amparada pelo ritmo intenso do sexo diante de mim, deixo que a camisola inteira caia no chão e me vejo nua, pronta para ser amada por mim mesma. Amparo-me no batente da porta, pensando se, na outra, do prédio à frente, alguém me olha como eu faço com aqueles dois homens.

(Trecho do livro Eduardo, Fernando e Eu)

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Mulheres fortes, sem rivalidade

Josy já tem 36 livros publicados até 2023 e segue escrevendo sobre mulheres que vivem aventuras sexuais, mas não só. Mesmo com diferentes personalidades, todas têm algo em comum em suas narrativas: "tomar as rédeas do próprio destino, né? Eu acho que é isso que as personagens mais fazem na história." Nas obras seguintes, que completam a trilogia de sua primeira criação, a personagem dá uma aula sobre lutar contra qualquer tipo de subordinação. "Tem partes que o cara é possessivo e ela chuta o balde", conta Josy.

"Não preciso de alguém me dizendo que vou conseguir, que sou linda e gostosa. Tenho espelho, força de vontade e uma sede de viver que desconhecia. Acredito em mim, tenho autoconfiança e autocrítica suficientes para fazer tudo o que quiser."

(Trecho do livro Puro Êxtase)

Além de dar vida a mulheres independentes e firmes, Josy também se preocupa em escrever histórias que funcionem como apoio para suas leitoras que estejam passando por relacionamentos abusivos. Em um enredo onde a personagem tentava sair de uma relação em que era oprimida, a autora descreve o apoio que a vítima recebe de suas amigas.

A intenção era evidenciar a importância das redes em situações como essa e estimular a procura por ajuda. Josy tem esse mesmo cuidado quando a vítima se dá conta das violências que sofreu ao longo da vida e reconhece quem foram os responsáveis. Rivalidade feminina é algo que escritoras do gênero evitam em seus livros.

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O que não fazer numa obra de sedução

Assim como boa parte das escritoras de livros eróticos no Brasil, o primeiro contato de Mila Wander, de 34 anos, com esse tipo de leitura foi a partir do best seller "50 tons de cinza". Nele, uma estudante de literatura chamada Anastasia Steele, que tem 21 anos e é sexualmente inexperiente, se vê apaixonada por Christian Grey, um CEO bilionário.

A história é marcada por cenas detalhadas de sexo em que a personagem é conduzida por práticas de sadomasoquismo, diante das quais se sente chocada e, paradoxalmente, seduzida. Na época, Mila não só gostou do livro, como comprou todos os que vieram em sequência, e se inspirava para escrever os próprios romances eróticos, que começaram a surgir em 2013.

As obras de Mila passaram a fazer muito sucesso e ela pediu exoneração do cargo de professora. Hoje vive apenas de seu trabalho como escritora, publicando via editoras e também de forma independente. Há anos se desconectou do livro que a inspirou a entrar nesse mercado. "Eu não tinha essa educação quando comecei a ler livros eróticos", analisa.

Os incômodos começaram quando ela percebeu que a história que guia Anastasia e Christian passa por abusos retratados de forma romantizada. A personagem diz "não" para algumas investidas sexuais e o cara continua, dando a entender que ela não estava expressando um limite, mas fazendo um jogo de sedução. Esse mau exemplo virou uma referência do que não fazer em um livro erótico. "Isso alimenta uma ideia de que um 'não' nunca é um 'não', mas um 'talvez', e pode se transformar em sim", lamenta Mila.

Nem CEO, nem ingênua

Contra a narrativa do homem poderoso fisgando a moça ingênua, no livro "Ninguém aguenta mais CEO", Mila conta a história de uma mulher que diz "não" para o milionário da empresa. Ela até enxerga os atributos físicos do rapaz, mas não vê sentido em ficar com ele. "O cara é muito mandão, muito metidão, e ela não quer se envolver com ele".

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A ideia era mostrar uma personagem que escolhe, e não só que é escolhida, além de satirizar a ideia de que mulheres sempre estão caindo aos pés de homens com poder. Mas a iniciativa foi rejeitada por muitas leitoras acostumadas com o conteúdo tradicional. "Quanto mais empoderada, mais ela é taxada de chata". O mesmo vale para mulheres que falam palavrão, comem muito e não são recatadas. Mila conta que a personagem foi chamada de idiota por diversas vezes.

Se ser hétero fosse opção sexual, eu optaria por não ser. Infelizmente, gostava muito de pau. Era uma pena ter que aturar o porco inteiro só por causa da linguiça.

(Trecho do livro "Ninguém Aguenta mais CEO)

Algumas escritoras optam por uma estratégia antiga de mercado: lançar livros com homens em situação de poder na capa apenas para que consigam ser lidas. Por vezes a imagem nem condiz com a história, mas é uma forma de chamar a atenção do público. Essa resistência aponta para a importância do trabalho.

Ele fazia a mesma coisa do livro

Os primeiros livros de literatura erótica que Shirlei Ramos, de 46 anos, começou a ler eram trazidos pelo pai, que trabalhava como ilustrador na Editora Abril. Naquela época, com 15 anos, as publicações eram quase sempre importadas. "Acho que nem existia brasileira escrevendo erótico, era tudo mesmo dos Estados Unidos".

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Shirlei era a única da turma de amigos que gostava desse tipo de publicação, por isso, não tinha com quem dividir o que lia todas as noites. Enquanto vivia a paixão pelos livros, Shirlei iniciou sua vida amorosa e se percebeu em um relacionamento abusivo.

Hoje, olhando para trás, ela sente que se tivesse tido acesso aos romances eróticos escritos por uma ótica feminista, poderia ter sido mais fácil entender as violências que estava vivendo. "[Os livros] eram de protagonistas submissas, eles estavam reproduzindo o que eu vivia", recorda Shirlei. Ela começou a criticar a personagem que estava sofrendo abuso, e passou a fazer o mesmo consigo. "Para mim, era culpa minha", analisa.

Com 23 livros publicados, Shirlei diz que sua protagonista preferida é Beatriz, de "Um olhar para a liberdade". Uma mulher que sai de um relacionamento abusivo de nove anos com um cara mais velho e consegue virar a dona da própria vida, realizando o sonho de ser estilista. "Ela consegue perceber que é merecedora e se liberta da voz do abusador que ficava dizendo o contrário", diz.

Matéria publicada originalmente em AzMina

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • O nome da autora foi grafado incorretamente como Jose Stoque. O correto é Josy Stoque. O texto foi corrigido.

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