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Thais Farage

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Entendi que ter tempo criativo também é uma necessidade pessoal

Ainda trabalho com moda e crio coisas muito legais, mas o grande tempo da minha vida é ocupado com muita eficiência pela dupla Excel + agenda - Unsplash
Ainda trabalho com moda e crio coisas muito legais, mas o grande tempo da minha vida é ocupado com muita eficiência pela dupla Excel + agenda Imagem: Unsplash

Colunista de Universa

16/07/2022 04h00

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Já faz um tempo que eu ando querendo abrir espaço na vida para ser mais criativa e foi dia desses que me dei conta que me falta tempo pra ser criativa. Não o tempo no sentido literal da coisa, porque eu sou muito boa de agenda e de organizar os processos e abrir brechas para dar conta. Mas o tempo da criatividade não é uma janela de meia hora entre uma reunião de financeiro e buscar meus filhos na escola. E, pra ser honesta, eu virei uma fazedora tão profissional que gostaria de conseguir dizer aqui qual é o tempo da criatividade: se não é meia hora, seria uma hora inteira? Uma tarde? Uma manhã? Me irrita profundamente admitir que esse tempo não cabe no meu calendário do Google.

No livro "Do Que Eu Falo quando Falo de Corrida", o escritor japonês Haruki Murakami fala como para ele correr, assim como escrever, não tem muita elaboração. Ele simplesmente levanta e vai correr, assim como ele simplesmente senta e escreve. Todo dia. Claramente, Murakami é uma pessoa muito melhor que eu porque eu não funciono assim.

Na real, eu funciono assim com todas as outras coisas da minha vida, mas não para escrever. Não funciona para mim sentar e escrever, eu só sento e escrevo quando a conversa já tá organizada na minha cabeça, quando já sei mais ou menos o que quero digitar. E, para ser muito honesta, eu só tenho assunto quando eu tenho tempo. Tempo para olhar pro mundo, para ver as pessoas, para reparar no fluxo da vida, para ficar feliz, para ficar melancólica. Tá certo que a verdadeira diferença entre mim e o Murakami é o fato óbvio de ele ser um gênio profissional da escrita, isso também deve ajudar bastante também no "senta e escreve", imagino eu.

A minha criatividade, no geral, existe nas roupas e no que eu escrevo. Eu não sou escritora, mas eu escrevo (livro, essa coluna, newsletter, roteirizo meus conteúdos, faço projetos...). E, com roupa, é mais fácil porque já absorvi na minha rotina o espaço para olhar pros tecidos, para as pessoas, para as vitrines, é uma criatividade visual que eu simplesmente cuido diariamente para não perder. Porque se me distraio perco também. E, como não é possível sair pelada, eu acabo pensando mais sobre o meu "trabalho roupa" do que sobre o meu trabalho escrito. Até porque, foi dia desses que me dei conta de que escrever é também meu trabalho.

O dia em que me perdi da criatividade

Eu sei que me perdi da criatividade na vida adulta, quase consigo dizer qual foi o dia e a hora em que decidi ser mais burocrática: foi quando os boletos ficaram sérios, quando me separei e precisei dar conta das contas da minha casa, orçar um novo plano de saúde, fazer caber escola, roupa e comida não só para mim, mas também pro Miguel.

Looooonge de mim colocar a culpa na maternidade, se tem um negócio que eu escolhi e amo ter escolhido é ser mãe. Mas sendo realista, antes de ter filho, se desse tudo errado, a consequência era menos cruel. Eu não gosto dessa conversa do "como é caro ter filho", ainda que seja.

Para mim, ter filho me deu uma outra dimensão da vida real e escolhi pensar mais pragmaticamente sobre o que eu precisava fazer pra trabalhar, ganhar dinheiro e estar em casa todo dia a tempo de brincar, cuidar e não perder nenhuma fofura.

Não dá pra ter tudo, pelo menos não ao mesmo tempo, e abri mão do meu lado criativo. Não completamente, afinal, ainda trabalho com moda e crio coisas muito legais, sem modéstia nenhuma. Mas o grande tempo da minha vida é ocupado com muita eficiência pela dupla Excel + agenda. Preciso confessar.

E sendo ainda mais honesta, vou te dizer que não foi difícil pra mim porque eu realmente sou boa executora, eu gosto de fazer, realizar, botar de pé. E gosto de uma planilha que fecha no azul, com fórmula de soma e subtração, sem erro.

E assim fui indo até que uma hora parecia que minha alma tinha saído do corpo e, não importava mais o quanto eu descansasse, viajasse, tirasse férias: eu estava sempre exausta.

Eu não conseguia mais ter ideia nenhuma, todo problema parecia maior do que eu e achei mesmo que ia ter um burnout. Não funciona só no operacional, eu preciso de tempo criativo.

Atenta ao mundo ao redor

Tenho prestado mais atenção para ver se consigo esse encontro com o lúdico e o divertido, tenho ficado atenta e feito algumas coisas que sei que me ajudam muito, tipo aprender coisas novas, fazer muita coisa a mão —com lápis de colorir e canetinha—, tenho lido mais e ficado menos tempo hipnotizada atrás de alguma tela. Mas, puxa, como é difícil fazer caber mais abstração no meio de tanta vida real, de tanto boleto, de tanto leva-e-busca, de tanta notícia horrenda?

Perguntei pro meu agente esses dias "por onde eu começo esse livro novo, meodeus", e ele disse "putz, tira um fim de semana sem as crianças e escreve um capítulo, qualquer um". E juro pra você que esse era o meu sonho do momento, mas não sei se vejo acontecer, e sinto que do jeito que eu tô —desidratada de magia criativa— um fim de semana não será suficiente. A sensação é de que eu precisaria de muito mais tempo.

Quando nasceu meu primeiro filho, ganhei de presente de uma grande amiga que já era mãe o livro "Para Educar Crianças Feministas", da Chimamanda Ngozi Adichie. E a primeira sugestão do livro é: "Seja uma pessoa completa: a maternidade é uma dádiva maravilhosa, mas não seja definida apenas pela maternidade", e também: "Tire um tempo para si mesma. Atenda suas necessidades pessoais". Demorou, mas só hoje entendi que a minha necessidade pessoal é, além de ter dinheiro e um teto todo meu, ter tempo criativo.