Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Abandonar livros: é só dizendo não que aceitamos os nãos que dizem para nós

Você abandona livros? Eu não. Ou pelo menos eu achava que não, até que precisei fazer uma limpeza na cabeceira da minha cama, onde uma montanha de páginas se acumulava, e constatei que alguns já haviam sido abandonados. Não como uma decisão tomada do tipo "não estou gostando, vou parar de ler", mas algo passivo, até: a mera aceitação do fato de que um livro iniciado há quatro anos e no qual não toco há pelo menos três já foi largado.

É bom abandonar, disse uma amiga que deixou uma planta na rua na cidade em que tem uma segunda casa. Essa amiga é ótima em cuidar; imagino que tenha sido exigente para ela o gesto de largar no chão de uma esquina qualquer o vaso que abriga os galhos e folhas deixados há mais de década pela amiga que, por sua vez, abandonou a casa emprestada. Imagino a mistura de culpa e alívio, sentimentos que parecem contraditórios mas que, camaleônicos, tantas vezes se revestem um do outro.

Há quem largue livros sem culpa, só com alívio. Certas essas pessoas: com tanto para ser lido, com tanta gente que não tem acesso a livros para ler, abandonar e doar talvez signifique colaborar para que cada livro encontre de vez o seu leitor (pois abandonar pode ser tanto deixar pelo meio quanto soltar num banco para alguém pegar).

Há muitos jeitos ou motivos para se deixar um livro de lado antes do final. O tempo é finito e outro amigo fez o cálculo: se alguém lê cinquenta livros por ano e tiver mais cinquenta anos de vida, terá apenas 2500 livros para ler, e não vai gastar um deles com o que não gostou.

Livro é muita dedicação sem dopamina, disse outro amigo; outro, que termina livros chatos por mero orgulho. Outro ainda porque não "pegou", porque está difícil se concentrar na história; outra diz que é raro e que se sente mal. Outra pondera que, ao abandonar, assume o que leu como algum contato com a obra.

A amiga que abandonou a planta me escreveu um tratado sobre abandonar livros: disse que há os abandonamentos convictos e os temporários. O convicto: não vale mais a pena insistir, seja por desinteresse, seja por expulsão (e é importante reconhecer que fomos expulsos). O temporário: a gente tem certeza que depois retoma ou recomeça, e manter-se nessa ilusão também faz parte.

A amiga que abandonou a planta falou também dos não-abandonamentos: uma pausa apenas, folhear sem culpa, usar o livro como um tarô, deixar que a surpresa aconteça. Não se é menos leitor quando se navega sem obrigações ou quando se espera pelo melhor momento.

A amiga que abandonou a planta apontou também o abandono para dentro: aquele quando nos esquecemos de nós ao ler algo tão bonito, que nos tira da pontinha do trampolim e nos faz dar o salto, abandonando as certezas de tudo o que é seguro e nos entregando para a pura vertigem.

A amiga que abandonou a planta se chama Gabriela Aguerre.

Continua após a publicidade

Outro amigo disse que não tem nem começado livros por falta de tempo. Outra atingiu a sabedoria: "parei de me sentir mal por deixar livros no meio. Resumindo, antes: tem algo de errado comigo; hoje: tem algo de errado com esse livro."

Culpa e alívio sinto eu agora por escrever uma coluna sobre livros enquanto o mundo está ruindo. Mas é possível que eu esteja escrevendo, também, sobre nostalgia, sobre o tempo em que não havia urgências de que se escrever num texto semanal; quantas vezes, afinal de contas, falamos ao silenciar.

Enquanto depunha de volta na estante o livro que constatei abandonado, pensei que a recusa, às vezes, é uma ferramenta de sobrevivência. E que é só dizendo não que poderemos enfim aceitar os nãos que dizem para nós.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes