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Marina Rossi

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Órfã do feminicídio: 'Quantas outras filhas ainda vão perder as suas mães?'

Micaela com Marli: "Ela era generosa, ajudava todo mundo. Era uma avó babona" - Arquivo pessoal
Micaela com Marli: 'Ela era generosa, ajudava todo mundo. Era uma avó babona' Imagem: Arquivo pessoal

Colunista de Universa

06/01/2023 04h00

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Todos os dias, Marli Barbosa Pinheiro, 46, saía para trabalhar às 4h30 da manhã. Cozinheira há mais de dez anos de uma rede de supermercados em Campinas, a 100 km de São Paulo, ela amava o que fazia. No dia 8 de outubro do ano passado, Marli deu um beijo na filha, Pâmela Pinheiro Caetano, 23, que vivia com ela, pegou a bolsa e saiu antes mesmo de o sol raiar.

Marli nunca chegou ao trabalho. Seu corpo foi encontrado horas depois, em uma vala com marcas de agressão e enforcamento com um cadarço de tênis. Próximo ao corpo, um capacete foi deixado.

Hoje, três meses após o crime, Pâmela está afastada do trabalho por questões psiquiátricas, não consegue retornar à casa onde vivia com a mãe nem retomar sua vida. A outra filha, a vendedora Micaela Caetano Barbosa, também de 23, tem pesadelos constantes e cobra por justiça. Micaela era enteada de Marli, mas a tinha como mãe.

Segundo a jovem, o homem apontado como autor do crime pela polícia era próximo da família, rondava Marli há anos e atende pelo apelido de "índio". "Acho que foi namorado da minha mãe, mas ela nunca assumiu isso para a família", contou Micaela à coluna.

Noilson Cena Coelho é procurado pela polícia como principal suspeito do caso de feminicídio - Divulgação - Divulgação
Noilson Cena Coelho é procurado pela polícia como principal suspeito do caso de feminicídio
Imagem: Divulgação

"Índio", cujo nome é Noilson Cena Coelho, desapareceu no dia do crime, e sua prisão temporária foi decretada, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. O caso está sendo investigado pela 2ª Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas, que busca pelo suspeito.

Câmeras de segurança de um dos vizinhos de Marli gravaram o momento em que a cozinheira saiu para o trabalho naquele 8 de outubro. No percurso até o ponto de ônibus, ela aparecia acompanhada por alguém dirigindo uma moto. Nas imagens, Micaela conta que é possível ver a mãe reticente com algo. "Ela fazia que 'não' com a cabeça o tempo todo", diz a filha.

Marli estava separada do pai de Micaela há quase dez anos, mas eles mantinham uma boa convivência. Micaela é filha biológica de um relacionamento anterior do pai, mas vivia com Marli desde muito pequena e era tratada da mesma maneira que a filha biológica dela, Pâmela. "Eu nunca fui atrás da minha mãe biológica porque, para mim, minha mãe sempre foi a Marli", diz Micaela.

Depois que os pais se separaram, as filhas foram viver com Marli, e a figura de Noilson passou a ser presente, ainda que de maneira discreta. Ele buscava Marli no trabalho às vezes, segundo familiares. Mas nunca esteve dentro de casa.

O suposto relacionamento entre Marli e Noilson, no entanto, parecia já ter terminado quando ela foi assassinada. "Fazia pouco tempo que ela havia me contado que estava conhecendo um outro homem, trabalhador, da igreja, e que logo ia apresentar para a família", conta Micaela. Para a filha, Noilson passou a ameaçar a mãe após saber desse novo relacionamento. "Nós acreditamos que a minha mãe já vinha sendo ameaçada por ele, justamente porque ela estava nesse novo relacionamento".

Marli estava feliz. Além do namoro, ela havia financiado a casa onde vivia com a filha, Pâmela. Amava a profissão, de acordo com Micaela. "Mesmo sendo um serviço que exigia muito dela. Trabalhava aos sábados, domingos e feriados e ia feliz". Além disso, a cozinheira cuidava da mãe, que é deficiente visual.

"Era assim que as pessoas se lembravam da minha minha mãe", conta Micaela. "Uma pessoa generosa, que ajudava todo mundo, amava o trabalho e a família. Ela era uma avó muito babona", diz, sobre sua filha de três anos, com quem a avó conviveu por apenas dois anos. "Elas conviveram por pouco tempo, mas era de encher os olhos ver as duas juntas".

Somente no primeiro semestre do ano passado, 699 mulheres foram vítimas de feminicídio, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número é o maior já registrado em um único semestre. Os dados nacionais de segurança pública, compilados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, não dispõem de informações específicas sobre feminicídio.

Micaela, que ainda tem dificuldades para narrar detalhes sobre como a mãe foi encontrada, espera justiça enquanto vive a agonia de saber que o suspeito de assassinar sua mãe está foragido. "Fico preocupada com ele solto", diz. "Eu tenho medo dele conhecer outras mulheres e fazer o mesmo com elas. Quantas outras filhas ainda vão perder as suas mães? Quantas netas vão perder suas avós?"