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Marina Rossi

REPORTAGEM

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Justiça nega quatro vezes direito ao aborto de grávida de siamesas

Foto meramente ilustrativa mostra mulher grávida - Andrey Zhuravlev/IStock
Foto meramente ilustrativa mostra mulher grávida Imagem: Andrey Zhuravlev/IStock

Colunista de Universa

12/10/2022 04h00

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A cada dia que passa, a cozinheira Lorisete dos Santos, 37 anos, sente aumentar uma mistura de agonia, medo e dúvidas sobre o futuro. Está nas mãos da Justiça sua quinta e última tentativa de interromper legalmente uma gestação em que ela e seus bebês correm risco. Grávida de quase oito meses de gêmeos siameses, uma condição extremamente rara em que os bebês nascem ligados, ela já teve seu pedido de interrupção da gestação negado quatro vezes pela Justiça. O último, foi no STF (Supremo Tribunal Federal), analisado e negado pelo ministro André Mendonça.

A gestação de Lorisete foi considerada "um risco potencial à saúde materna", e a condição dos bebês foi classificada como "incompatível com a vida", de acordo com laudos médicos aos quais a coluna teve acesso e que nem chegaram a ser analisados. As negativas da Justiça para a realização da interrupção dessa gestação foram baseadas em uma ordem técnica: o pedido, segundo os juízes, não poderia ser tratado via habeas corpus. O recurso foi utilizado pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que representa Lorisete, para que fosse, justamente, analisado com urgência. "O único remédio possível para se enfrentar rapidamente o caso era um habeas corpus, por causa do pouco tempo que temos", diz o defensor público do caso, Andrey Melo.

A corrida contra o relógio foi iniciada quando Lorisete recebeu o diagnóstico, ainda que de forma pouco esclarecedora. No início da gestação, ela torcia para que os bebês fossem duas meninas. "Ter uma menina era o meu sonho", diz ela, que já é mãe de dois meninos, um de 15 anos e outro de 4 anos. Ao realizar o ultrassom, sua expectativa era alta. "Eu perguntei se já dava para saber o que era, mas notei que o médico que fazia o exame estava meio apavorado", conta. "Então, perguntei de novo: 'São duas meninas, doutor?'. E ele respondeu: 'Espera um pouco, mãe, estou vendo algo que eu nunca vi'."

O breve silêncio na sala foi logo interrompido pelo profissional, que começou a contar que os bebês estavam unidos, que era possível visualizar duas cabeças, dois corações, dois estômagos, mas só uma bexiga e duas pernas. E, sim, eram duas meninas.

Moradora do pequeno município de São Luiz Gonzaga, a 500 quilômetros de Porto Alegre, Lorisete teve de ir até a capital para fazer um exame mais minucioso. "Em Santo Ângelo [cidade próxima a São Luiz Gonzaga, onde ela fez o ultrassom], ninguém conseguia me dizer nada, porque ninguém nunca tinha visto algo parecido", diz. Mas chegando a Porto Alegre, a confirmação do que ela mais temia foi feita: "O médico disse que era muito grave a situação, porque elas compartilhavam um vaso sanguíneo muito importante [a artéria aorta, uma das mais importantes do corpo humano, que leva oxigênio para todo o organismo]. Ele achava que elas não iam sobreviver, que as chances eram muito pequenas".

A partir daquele momento, Lorisete passou a receber atendimento de uma psicóloga, que encaminhou seu caso para a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. O defensor Andrey Melo explica que o caso de Lorisete se enquadra em uma das condições em que o aborto legal é permitido. "O caso dela é análogo ao de bebês anencéfalos", afirma. Em 2012, em uma decisão histórica, o STF decidiu que a interrupção de gestação de fetos anencéfalos não é crime. "Mas, mesmo assim, ela precisava de uma autorização da Justiça." Além disso, o risco à vida da própria mãe também se enquadra nas determinações legais de interrupção de gravidez.

O primeiro pedido foi julgado e negado em uma semana pelo juiz local. "Consideramos a decisão absurda, porque o juiz se centra mais em um risco não absoluto à vida da gestante", explica o defensor. A partir de então, a Defensoria entrou com o habeas corpus, também negado. "Nenhum dos julgadores abriu o processo, examinou o laudo e indeferiu. As decisões foram tomadas no sentido de dizer que o HC não era o remédio adequado para o caso. Nenhum dos tribunais julgou o mérito."

"O fato principal", diz o defensor público, "é obrigar a gestante a carregar dentro de seu ventre uma vida que não tem possibilidade de ocorrer fora do útero". "Estamos diante de uma mulher que vai dar à luz para enterrar seus filhos depois." Enquanto a Justiça negava sucessivas vezes o pedido da Defensoria, a gestação de Lorisete avançava. E suas dúvidas e angústias também. "Na última consulta, eu fiz uma pergunta sincera para o médico. Disse: 'Doutor, não arrumei nada delas, o quarto, as roupinhas, nada. Eu devo arrumar?'. Ele ficou em silêncio por um tempo e depois disse: 'Como você vai fazer caso não consiga levar elas para casa?'."

E como se não bastasse o medo da mãe de perder seus bebês, ela teme também pela própria vida. "Eu só peço a Deus que nos ajude e que eu fique bem, porque o médico disse que pode dar hemorragia. Me disseram já que vai ser um parto difícil, que não sabem como vão fazer. Acho que vão ter que tirar meu útero."

Para a família, não há nada mais a ser feito, a não ser esperar. No próximo dia 13, será julgado o último recurso no Tribunal de Justiça de Porto Alegre. Perguntada o que ela diria ao juiz que vai julgar seu caso pela última vez, Lorisete não encontra palavras. Pensa por uns instantes e, depois, responde. "O que eu vou dizer agora? Depois de todo este tempo? Eu disse que se fosse para fazer [a interrupção], que fosse logo, porque eu não queria sentir elas se mexendo na minha barriga. Agora eu sinto elas mexendo toda hora."