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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O sofrimento das mulheres em mais uma chacina no Rio de Janeiro

Corpos achados por moradores no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ) - Marcos Porto/Agência O Dia/Estadão Conteúdo
Corpos achados por moradores no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ) Imagem: Marcos Porto/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Colunista de Universa

23/11/2021 12h38

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Acordei, esta manhã, com os versos do poeta e intelectual Mano Brown na cabeça: "O que é, o que é? / Clara e salgada / Cabe em um olho e pesa uma tonelada / Tem sabor de mar / Pode ser discreta / Inquilina da dor / Morada predileta".

Na segunda-feira (22), as mulheres do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), foram obrigadas a secar a lágrima e adentrarem no mangue com lama pela cintura para retirar de lá os corpos dos filhos, netos e companheiros assassinados numa violenta ação policial.

No jogo de adivinhação proposto por Brown a inquilina da dor é a lágrima, que ele mesmo continua descrevendo como a irmã do desespero e rival da esperança. Fiquei refletindo nas lágrimas de mulheres pretas que escorrem diante de nossos olhos em mais um final de semana violento numa comunidade do Rio de Janeiro.

Essas lágrimas não são discretas, mas fazem na dor sua morada predileta sob o julgo covarde de uma sociedade racista e aniquiladora de sonhos de pessoas pretas e das quase brancas tratadas como pretas.

Os relatos dos moradores da região de Palmeiras, dentro do Complexo, dão conta de que a ação ocorreu em seguida à morte do sargento Leandro da Silva, que foi assassinado supostamente por criminosos na noite de sábado (20) quando iniciava um patrulhamento no Complexo.

A defensora pública do Rio de Janeiro, Maria Júlia Miranda, falou, em em entrevista ao UOL News hoje (23), que a operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, que matou ao menos oito pessoas no domingo (21) foi uma "operação vingança", em retaliação à morte de um policial na região no dia anterior.

Segundo a Secretaria da PM do Rio, a ação do Bope ocorreu "após informação de que um dos indivíduos que atacaram a equipe do 7º BPM no sábado, na ocorrência que vitimou o sargento Leandro da Silva, estaria ferido ainda no interior da região. As equipes foram atacadas nas proximidades de uma área de mangue com mata, ocorrendo um intenso confronto".

O que a Secretaria da PM não respondeu foi como os corpos, após o intenso confronto, foram parar empilhados no meio do manguezal. Segundo os moradores, as vítimas estavam amontoadas umas sobre as outras, com sinais de tortura e marcas de tiro na cabeça, o que indicaria sinais de execução. Quem iniciou a retirada dos corpos foram os próprios moradores. Mães, filhas e esposas desbravando o barro em busca dos seus.

Chacinas como esta rendem apenas aos noticiários. Se tornam chamariz de audiência em programas que usam a morte como entretenimento para as tardes de almoço. De sobremesa servimos as insubmissas lágrimas de mulheres, parafraseando a escritora Conceição Evaristo. Lágrimas que não se deixam submeter, mas escorrem e só encontram acolhida no colo de outras que sabem como é doloroso enterrar nossos filhos, nossos maridos, nossos tios, pais e irmãos.

Serei taxada logo abaixo nos comentários como a defensora de bandidos por estar escrevendo sobre direito à ampla defesa. No país onde muitos bravejam que bandido bom é bandido morto, aqueles que, corajosamente, estilhaçam a máscara do silêncio pelos direitos humanos são apedrejados.

Existe um projeto político de terror, morte e derramamento de sangue no país desde que éramos Terra de Santa Cruz. Não haverá processo para encontrar culpados nesta ação. Não haverá investigação para averiguar as reais circunstâncias da violência. Só restarão miséria, dor e lágrima.