Não se pode fazer festa com a nossa dor

O assunto do final de semana foi a festa de aniversário da socialite paulista Donata Meirelles. No salão, negras vestidas como mucamas recebiam os convidados. A imagem que viralizou nas redes sociais foi a da dona da festa sentada em uma cadeira de palha rodeada pelas moças.
Depois da enxurrada de comentários e compartilhamentos nas redes, Donata veio a público se desculpar e esclarecer que, como a festa foi realizada em uma sexta-feira, estava apenas honrando a tradição do estado natal de seu marido, o publicitário Nizan Guanaes, e toda a cultura do lugar, incluindo aí o Candomblé e as roupas brancas, usadas neste dia em homenagem à Oxalá. O fato de estar sentada na cadeira de palha era apenas outra ode à religião.
Nada contra a aniversariante, que inclusive não conheço. O que incomoda sem dúvida, é o que foi passado enquanto imagem: uma simbologia claramente racista que remetem aos tempos de Casa Grande e Senzala e que está impregnada no imaginário do brasileiro, com os negros sempre em posição inferior.
Quando você remete àquela época, simplesmente se retrata um momento horrível da história. Negros foram escravizados, levaram chibatas, mulheres foram estupradas e outros milhares morreram. Daí a indignação: não se pode fazer festa com a nossa dor. O que diriam de uma festa que, de alguma forma, lembrasse "Hiroshima" ou o"holocausto", com pessoas vestidas de nazistas? Nem preciso dizer a celeuma que provocaria e já provocou -quem não se lembra da saia justa provocada pelo príncipe Harry em uma festa usando uma fantasia anos atrás? Ou do estilista John Galliano, banido da Dior depois de proferir comentários anti-semitas?
Por que, então, quando se trata dos negros, a tendência é sempre diminuir, amenizar a revolta e "passar o pano" do "calma, não é bem assim, lá vêm vocês com o mimimi"? Não se pode banalizar uma situação de sofrimento que até hoje nos marca de maneira explícita em todas as esferas da sociedade.
Outro ponto: ok, a Bahia está na moda, o culto à Iemanjá e mais recentemente Iansã fazem a alegria dos modernos. Mas o Candomblé, além de uma religião sagrada, tem seus segredos e hierarquias. Para quem não sabe, a cadeira de palha é um símbolo máximo dentro de um terreiro. Ele simboliza o trono onde o babalorixá ou a yalorixá recebe as bênçãos, cumprimentos e principalmente respeito de seus filhos. É dali que eles governam sua casa.
Mostrar ao outro quando ele comete racismo -e o preconceito em geral - é como educar uma criança: precisa ser "desenhado" e explicado à exaustão para que as pessoas entendam. Pode parecer óbvio? Sim. Cansa? Cansa demais todos os dias bater na mesma tecla, mas é assim que funciona. Justamente por estar entranhado em todos os poros, o racismo estrutural se torna invisível, corriqueiro: nas frases que você usa, no medo que você tem quando vê uma pessoa negra na rua vindo em sua direção ou num ambiente que "não lhe é natural".
Mais uma vez, não se trata de discutir o caráter da moça nem suas ligações com a Bahia. Nem se realmente pensou no significado do que estava fazendo. A questão aqui é fazer enxergar o respeito do ponto de vista ético e humano. E o fato de que pessoas privilegiadas e com todo tipo de informação ainda cometam o erro de não enxergar o racismo. Parem de romantizar uma fase tão dolorida da nossa história! Parem de proferir frases de efeito na Internet, sem exercê-las. Parafraseando a ativista americana Angela Davis, se você diz contra o racismo, seja anti-racismo. De fato.
*Claudia Lima faz o blog Tempero no UOL e é adepta do Candomblé.
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