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G-Shock, relógio inquebrável quarentão, tem nova missão: sobreviver a Marte

Marcella Duarte

De Tilt, em São Paulo

06/07/2023 04h00Atualizada em 13/07/2023 08h32

O icônico G-Shock está fazendo 40 anos. De passagem pelo Brasil para comemorar o marco, seu criador, o engenheiro japonês Kikuo Ibe, 71, estabeleceu em entrevista a Tilt uma nova missão para o relógio da Casio que ganhou fama de inquebrável: sobreviver às duras condições do espaço, em futuras missões para a Lua e Marte.

Quero que ele funcione fora da Terra
Kikuo Ibe

Na Casio desde os 27 anos, Ibe entrou na empresa para trabalhar no desenvolvimento de produtos. Na época, o foco era fazer relógios digitais de metal, o mais finos possível. Mas um acidente o fez trilhar um caminho oposto: um relógio dado pelo pai se quebrou em pedaços após cair no chão.

Ibe, então, se propôs a desenvolver um modelo robusto, capaz de suportar condições extremas. A tarefa envolveu muitos relógios atirados da janela do banheiro do escritório, no terceiro andar da sede da empresa em Tóquio.

Acho que as pessoas pensavam que eu tinha um problema intestinal, de tanto que ia no banheiro. Era um processo sem fim. A cada vez que eu conseguia resolver uma coisa, quebrava outra
Kikuo Ibe

ibe - Marcella Duarte/UOL - Marcella Duarte/UOL
Kikuo Ibe
Imagem: Marcella Duarte/UOL

Dois anos e mais de 200 protótipos depois, a Casio lançou em 1983 o primeiro G-Shock, o DW-5000C. O resto é história. Até hoje, são mais de 140 milhões de unidades vendidas em todo o mundo.

A saga da resistência

A proposta que Ibe apresentou aos seus chefes era para lá de direta ao ponto. Tinha uma só frase:

Desenvolvimento de um relógio de pulso que não quebre mesmo se cair

Quando perguntado o que faria se fosse ele o chefe, o engenheiro veterano faz com as mãos um gesto de papel sendo rasgado — tipo, jogaria no lixo. Mas a Casio embarcou.

Acho que hoje em dia não aprovariam
Kikuo Ibe

ibe - Marcella Duarte/UOL - Marcella Duarte/UOL
Desenvolvimento de um relógio de pulso que não quebre mesmo se cair
Imagem: Marcella Duarte/UOL

Sua ideia inicial era cobrir o relógio com um material macio, para absorver os impactos. O plano era inviável: ele percebeu que a tal camada precisaria ser grossa demais. Ibe mostrou à reportagem alguns protótipos: o primeiro a resistir intacto à queda do banheiro estava em uma esfera com mais de dez centímetros de diâmetro.

Ibe - Marcella Duarte/UOL - Marcella Duarte/UOL
Primeiro protótipo do G-Shocl que aguentou o impacto, mas era grande demais para caber em uma pulseira
Imagem: Marcella Duarte/UOL

Frustrado, à beira de desistir de seu sonho e cogitando até se demitir da empresa, Ibe fez um passeio no parque para espairecer que lhe deu a inspiração que faltava:

Eu vi uma menina brincando com uma bola de borracha, batendo no chão, e me veio a ideia. O módulo do relógio precisava flutuar, como se estivesse dentro de uma bola, em um sistema de amortecimento
Kikuo Ibe

O principal segredo do G-Shock é ter um bolsão de ar ao redor do "coração" do relógio. Por isso, ele não é fininho. A receita de sucesso contém outros ingredientes:

  • por dentro, a estrutura oca permite que o módulo flutue e, assim, não sofra choques diretos;
  • materiais amortecedores internos;
  • componentes internos protegidos por revestimento de uretano, um composto maleável;
  • caixa 3D com saliências, que servem de escudo;
  • pulseira curvada de borracha para impedir que a parte de trás do relógio bata no chão ao cair;
  • vidro de safira para aumentar a robustez.
Ibe - Marcella Duarte/UOL - Marcella Duarte/UOL
Kikuo Ibe mostra como funciona o sistema de amortecimento, em que o relógio "flutua" no ar
Imagem: Marcella Duarte/UOL

A resistência é mais que comprovada, pois o relógio já foi:

  • jogado de alturas enormes,
  • martelado,
  • eletrificado,
  • esmagado por um rolo compressor.

Em 2017 entrou para o Guinness, o livro dos recordes, como o "relógio que suporta maior impacto", após ser atropelado por uma carreta de 25 toneladas. Spoiler: Tilt também fez algo parecido no vídeo que abre esta matéria, e não vimos um arranhão sequer.

"Isso superou todas as nossas expectativas. Se tivesse quebrado, talvez eu não estaria aqui", ressalta Ibe.

O G-Shock é feito para sobreviver a:

  • impactos físicos;
  • eletricidade e magnetismo;
  • efeitos da gravidade;
  • vibração;
  • baixas temperaturas;
  • água.

O nome do relógio é uma referência às forças da gravidade, cuja teoria foi formulada por Isaac Newton após observar uma maçã caindo de uma árvore.

G-Shock no espaço

A criação de Ibe já foi algumas vezes ao espaço, mas sempre no pulso de astronautas da Nasa. Era um dos relógios mais populares na era do Ônibus Espacial, mas nunca foi além da Estação Espacial Internacional (ISS) — é um dos poucos aprovados para uso a bordo, por resistir às forças da viagem.

Agora, o sonho do engenheiro é ver seu legado ainda mais longe, quando a humanidade habitar outros corpos do Sistema Solar, como a Lua ou Marte. "Quero que ele funcione fora da Terra." Enquanto isso não acontece, ele brinca sobre o que faz na Casio.

"Pela minha idade, sou uma mão-de-obra que não é mais necessária para a empresa. Minha principal missão agora é levar esta história para o máximo de locais. E, no tempo que resta, penso em desenvolver novos modelos."

Modéstia à parte, ele segue ativo e neste momento trabalha em dois projetos: uma edição especial limitada para celebrar os 40 anos, que deve ser lançada no segundo semestre deste ano, e outro para 2024, que promete uma inovação no vidro.

Ainda que seja apaixonado pelos relógios que criou, Ibe não é um colecionador. Possui apenas três relógios, todos G-Shock, é claro, e exatamente do mesmo modelo: o DW-5600, um dos mais simples, baratos e tradicionais, lançado inicialmente em 1987.

Tive tanta dificuldade para desenvolver que até hoje uso os primeiros. Gosto porque o design é bem simples e cabe certinho no meu braço, que é mais fino. Uso bastante a função de cronômetro. Tenho um preto, um vermelho e um branco. Alterno de acordo com o meu humor e a ocasião
Kikuo Ibe

Na verdade, ele tem um quarto G-Shock, mas que não usa: é o primeiro de todos, bem guardado em uma gaveta, como um tesouro.

Caso você esteja se perguntando, ele nunca conseguiu consertar o relógio que ganhou de seu pai. "Se tivesse conseguido, talvez não teria inventado o G-Shock. Eu não imaginava que desenvolveria algo assim inovador a partir desse episódio e até joguei ele fora. Se soubesse, teria guardado."

Sinônimo de estilo atemporal

Muito grande para o gosto estético da época, em que relógios eram itens belos e frágeis, o primeiro G-Shock não foi um sucesso imediato. Militares, bombeiros e outros trabalhadores que precisavam de resistência foram o público inicial.

No início dos anos 1990, porém, caiu no gosto de esportistas, principalmente os do skate e do surf. Assim, ganhou o mundo. Quatro décadas depois e mantendo o mesmo design, segue no pulso de jovens, agora em uma tendência meio "hipster" e retrô.

Segundo a Casio, Estados Unidos e o Brasil são dois dos maiores mercados do G-Shock. Há até clubes de aficionados. "Por aqui, ele virou moda, uma coisa mais fashion, para uso no dia a dia. Acho que os brasileiros têm o olho muito aguçado para enxergar produtos bons. Adoro o Brasil", ressalta.

Em meio à era dos smartwatches, Ibe acredita que o moderno e o tradicional se complementam. "Eu sou grato por esses produtos mais tecnológicos, pois foi uma forma de as pessoas voltarem a olhar para o relógio", diz.

O que tem mudado é nossa relação com o tempo, e isso o preocupa. "Antigamente, não tinha estas novas tecnologias, não tinha nem computador. As pessoas sentiam que o tempo passava um pouco mais devagar, conseguiam vivenciar mais."

Hoje, as informações chegam de várias formas, ao mesmo tempo, e parece que o tempo está passando mais rápido. As pessoas estão sempre ocupadas, correndo, e isso pode deixá-las doentes. Mas sinto que os brasileiros têm um sentimento mais relaxado, menos corrido. Queria que o mundo todo fosse assim. A hora não muda
Kikuo Ibe