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Sem CPF ou biometria: lei proíbe farmácias a dar desconto em troca de dados

Eric Fiori/UOL
Imagem: Eric Fiori/UOL

Lucas Santana

Colaboração para Tilt

03/03/2021 04h00

A jornalista Amanda Rossi foi a uma farmácia na capital paulista como costuma fazer com frequência. Ao passar pelo caixa, veio a surpresa: ela precisaria fornecer a sua biometria ou não teria um desconto significativo nos seus medicamentos. A situação viralizou na internet, reacendendo as discussões sobre privacidade.

Amanda contou a Tilt que já havia cedido o CPF para a farmácia em troca de descontos generosos. Dessa vez, porém, o pedido de suas informações pessoais foi além.

"A atendente me disse que o preço era de R$ 48, 'com desconto'. Mas, para isso, eu precisaria dar a biometria e concordar com o uso dos dados. Nós, cidadãos, não temos muita escolha. Ou abrimos mão de dados pessoais extremamente íntimos sobre a nossa saúde ou temos que pagar R$ 100, R$ 200 a mais, todo mês", reclama a jornalista.

Esse pedido para concordar com o uso dos dados, solicitado no caixa da farmácia, é uma prática que deve se tornar comum nos estabelecimentos comerciais. Tudo por causa das novas regras da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que entrou em vigor no ano passado.

A legislação foi criada para nós termos mais controle e segurança sobre como as nossas informações pessoais são usadas por empresas e instituições públicas. Com isso, passa a ser obrigação das instituições detalhar com clareza o que farão com os nossos dados.

Porém, segundo o Código de Defesa do Consumidor, condicionar o desconto a cadastros obrigatórios vai contra os direitos do cidadão, explica o advogado Marco Antônio Araújo, diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Para ele, não há base legal e o consumidor pode escolher não fornecer nada. Se a pessoa desejar, ela pode ainda entrar com uma reclamação formal no SAC da empresa e no Procon.

O advogado André Câmara, responsável pela área de LGPD da empresa Benício Advogados Associados, afirma que o cadastro como condição para receber desconto é, no mínimo, controverso. Mas ele avalia que a prática é legítima desde que:

  • Seja do interesse da empresa que instituiu o desconto
  • Tenha havido consentimento do consumidor sobre a coleta dos dados
  • A empresa tenha sido clara sobre a natureza do cadastro

"O que a LGPD veda é que os dados sejam revertidos em vantagens econômicas para o fornecedor de produtos ou prestador de serviços. Deve-se levar em conta, entretanto, a forma como os dados têm sido coletados — esta sim pode ser ilegal", afirma.

E quem administra os dados nas farmácias?

Quando você fornece informações pessoais em farmácias, elas são repassadas para empresas intermediárias, as PBMs (Gestores de benefícios farmacêuticos, em tradução livre), que administram os dados e os repassam à indústria farmacêutica, explica Rafael Zanatta, diretor da Associação Data Privacy Brasil.

"Isso é arbitrado como uma possibilidade de gerar desconto para as pessoas", explica. Zanatta aproveitou que o assunto repercutiu nas redes sociais para destacar os problemas por trás do programa de benefícios das farmacêuticas.

Ele argumenta que a discussão sobre os descontos vai além da LGPD. Ela deve englobar também as PBMs, jogando luz sobre mecanismos de licenciamento e como são desenhados os descontos fornecidos pelas operadoras da indústria por meio dos dados dos consumidores.

Como fica o meu desconto?

O tema é polêmico e não tem uma solução clara pensando em nível nacional. No final do ano passado, uma lei sancionada no estado de São Paulo proibindo farmácias de exigirem o número do CPF em troca de descontos em compras. No entanto, a decisão gerou dúvidas sobre a consistência da nova lei.

Os advogados consultados por Tilt divergem sobre a troca de dados pelo valor promocional. "Se a loja se recusar a dar o desconto, o consumidor pode entrar em contato diretamente com o Procon e abrir uma reclamação", diz o especialista Marco Antônio.

Já o advogado André Câmara afirma que não há clareza jurídica sobre isso. "Trata-se de pergunta difícil de ser respondida no cenário jurídico atual, que certamente dependerá de acertos futuros, seja a partir da própria ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), seja a partir dos Tribunais, inclusive analisando princípios da LGPD com princípios do Direito do Consumidor."

Cuidados que você pode tomar

Os recentes episódios de vazamentos de dados pessoais registrados no país — chamados na internet de vazamentos do fim do mundo — acenderam um alerta para os cidadãos sobre a falta de segurança de dados no Brasil.

O diretor do Data Privacy Brasil recomenda que os consumidores exijam explicações das empresas sobre o destino das informações, se há um programa de proteção de dados estruturado e até mesmo sobre como funciona o programa de benefício.

"Analise se há de fato um benefício razoável e desconfie de descontos muito altos. As pessoas ficam tentadas a ceder, pois há um cenário de dificuldade econômica, mas é importante superar a discussão individual e partir para o coletivo, entendendo se há manipulação de preços ou mesmo enriquecimento com dados das pessoas", ressalta Zanatta.

O advogado Marco Antônio recomenda cautela: "o ideal é nunca fornecer dados pessoais em ambientes digitais desconhecidos, além de registros em lojas físicas."

Foi o que fez Amanda, que saiu da farmácia sem remédio nenhum. "Eu neguei. E, por isso, o preço praticamente triplicou. Resultado: não comprei. Não vou dar minha digital para a farmácia, ainda mais após o vazamento do fim do mundo."

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, a sigla em inglês para Gestores de Benefícios Farmacêuticos é PBM (Pharmacy Benefit Managers), e não PDM como estava anteriormente. A informação já foi corrigida.