Topo

PL das Fake News quer rastrear mensagem, e isso afetará sua privacidade

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Carlos Madeiro

Colaboração para Tilt, em Maceió

25/08/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Rastreabilidade das mensagens está no centro do debate do projeto de lei
  • Proposta encontra resistência de especialistas e entidades pelo risco à privacidade
  • Projeto prevê acesso aos metadados da mensagem que você compartilha
  • Isso pode interferir na criptografia do processo de enviar e receber mensagem
  • PL é visto como falho porque é possível "enganar" app alterando mensagem original

O PL das Fake News traz em seu artigo 10 um ponto que se tornou o centro do debate sobre o tema: a rastreabilidade das mensagens em massa. Recheada de polêmicas e incertezas, a proposta surgiu com a intenção de descobrir autores de crimes na internet, mas especialistas e entidades civis enxergam a ideia como um risco à privacidade.

Rastrear uma mensagem é seguir o caminho que ela percorre entre os usuários no aplicativo, o que torna possível, por exemplo, não só achar o autor original, mas saber todos que a compartilharam.

Ainda não está claro como a medida do artigo 10 poderá inibir ou punir a disseminação de fake news e mensagens de ódio —intenção principal do projeto de lei. Como está escrito atualmente, os serviços de mensagens privadas —WhatsApp e afins— devem guardar os registros dos envios de mensagens encaminhadas em massa por três meses, mas protegendo seu conteúdo.

O que são esses registros? São metadados como data, hora e número de usuários para quem a mensagem em questão foi enviada. Já texto, fotos e vídeos da mensagem não seriam acessados, de acordo com a proposta.

  • O artigo chama de encaminhamento em massa o envio de uma mesma mensagem por mais de cinco usuários, em até 15 dias, para muitos destinatários em grupos, listas de transmissão ou outros métodos;
  • O acesso aos registros será para saber o autor de um encaminhamento em massa de "conteúdo ilícito" (o artigo não dá exemplos disso) e funcionará como prova de investigação criminal e processo penal, obedecendo ao Capítulo III do Marco Civil da Internet;
  • Não é obrigatório guardar registros em casos de mensagens enviadas a menos de 1.000 usuários --nesse caso, tais registros devem ser destruídos nos termos da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).

Na prática, esse mecanismo encara desafios tecnológicos e legais para garantir que não haverá uso indevido e vazamentos dos conteúdos das mensagens. O que você precisa saber é: não há como fazer isso sem mexer, mesmo que de forma imperceptível, com a sua privacidade.

O que está em jogo?

Raquel Saraiva, pesquisadora e doutoranda em ciência da computação na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e presidente do IP.rec (Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife), explica que metadados são basicamente dados acerca de outros dados, ou seja, informações secundárias sobre uma informação principal.

"Por exemplo: quando a gente tira uma foto no celular, ele vai armazenar dados sobre o modelo da câmera, dado de localização, data e hora que a foto foi tirada etc. Isso fica guardado no aparelho de forma muitas vezes não visível diretamente para nós", explica.

No caso das mensagens, segundo ela, algumas informações que podem ser requisitadas seriam localização, data e hora, fuso horário e IP da conexão da internet, entre outras informações. "São dados acessórios sobre as mensagens que estão sendo trocadas, mas que dizem muito sobre o contexto no qual a mensagem foi enviada", explica.

Criptografia em risco

Para pesquisadores da área de tecnologia, é impossível implementar esse mecanismo sem afetar a privacidade.

Principal aplicativo de troca de mensagens no país, o WhatsApp já se mostrou contrário a rastreabilidade, porque entende que seria necessário "etiquetar" todas as mensagens enviadas para contatos próximos, o que interfere na criptografia de ponta a ponta, o método usado pelo app para prometer que a mensagem chegará apenas ao usuário final, sem ser interceptada no trajeto.

"A rastreabilidade acaba com essa garantia", afirmou a empresa a Tilt.

O aplicativo alega que um modelo que exija o fornecimento, de uma só vez, da lista de todos que enviaram certo conteúdo quebra a criptografia, pois "força os aplicativos a armazenar todas as mensagens em seus servidores e, dessa forma, ter acesso todos os conteúdos. Essa mudança afetaria substancialmente o design e uso dos nossos serviços de mensagens criptografadas que existe hoje", diz o WhatsApp.

Raquel Saraiva, da UFPE, lembra ainda que o conceito de privacidade não pode ser atrelado somente ao conteúdo da mensagem, mas também a outros aspectos. "Especialmente nesse caso em que as conexões das pessoas então sendo rastreadas, quem fala com quem, quando, como. Dá para se extrair um padrão disso, que pode alimentar narrativas sobre aquela pessoa", completa.

Para ela, também não há certeza de como essa rastreabilidade seria implementada sem a necessidade de quebra de criptografia.

"Do ponto de vista matemático, não quebra. Mas a criptografia traz confiabilidade, já que as partes envolvidas têm uma segurança de que suas mensagens só serão acessadas pelo emissor e pelo receptor, sem acesso de terceiros e alteração do conteúdo. Uma vez que um recurso desse rompe essa confiança, o usuário passa a não ter mais certeza de que ninguém tem acesso à mensagem", pontua.

Dá para "enganar" o aplicativo

O professor e pesquisador Sivaldo Pereira da Silva, coordenador do CTPol (Centro de Estudos em Comunicação, Tecnologia e Política) da UnB (Universidade de Brasília), afirma que, da forma como está posta no PL, a rastreabilidade não vai ajudar no combate à circulação de fake news. Por exemplo, o usuário pode copiar e editar o texto antes de encaminhar uma mensagem recebida por ele, para que sua cópia seja levemente diferente da original.

"Primeiro, a rastreabilidade é tecnicamente ineficaz, porque ignora dimensões técnicas e será facilmente burlada. Segundo, porque mostra desconhecimento sobre a dinâmica de circulação em massa de informações falsas, na qual um mesmo conteúdo perpassa várias plataformas podendo ser compartilhado com pequenas variações", afirma.

Nesse sentido, em abril o WhatsApp limitou a transmissão de mensagens "frequentemente encaminhadas" de cinco para apenas uma conversa por vez. "Desde então, houve uma redução de 70% no número de mensagens em todo o serviço", diz o app. No início do mês, iniciou testes, junto ao Google, de um novo recurso que permite verificar o conteúdo das mensagens "frequentemente encaminhadas".

Pode ter efeito contrário

O pesquisador da UnB, que tem formação jornalística, também acredita que o PL não vai atingir quem de fato produz desinformação, mas o contrário.

"Terá, na verdade, um efeito colateral contrário ao criar um grande aparato de vigilância a pessoas que circulam grande quantidade de informação potencialmente verídica, que não estão cometendo ilícitos ou preocupadas em burlar o sistema, como jornalistas, ativistas, influenciadores digitais, celebridades, políticos, autoridades etc.", afirma Silva.

Além disso, ele diz que isso abre brecha para que os dados armazenados sejam usados de forma indevida. "A fiscalização no Brasil é precária, já que, embora tenhamos uma lei de proteção de dados pessoais aprovada, não temos ainda uma autoridade reguladora independente e atuante para garantir a proteção da privacidade e inibir violações", completa.

Presunção de inocência

Fabro Steibel, diretor-executivo do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) Rio, diz que, se aplicada, a rastreabilidade pode trazer outro risco: que suas mensagens sejam usadas em investigações sem você saber disso. "Pode acontecer de haver uma investigação criminal e você está ali no meio porque passou algo para alguém", diz.

Para ele, o artigo do PL tenta tornar possível montar um quebra-cabeça que chegue ao autor da mensagem, mas não será restrito a ele. "Nesse caminho, se você passou no meio, você é suspeito porque você está naquela rede de mensagens. Por isso que se fala que é contra a presunção da inocência, porque você vigia todo mundo", pontua.

Uma outra consequência que a rastreabilidade pode trazer é tornar o país diferenciado para gestores de aplicativos.

"Possivelmente o Brasil vai se tornar uma categoria 'B' de WhatsApp e de aplicativos de mensagem. O que se quer ali [no PL] é colocar algumas ferramentas que são incompatíveis com essas inovações, algumas até talvez incompatíveis com a criptografia", diz.

Ainda segundo ele, esse "WhatsApp do Brasil" vai ser diferente da versão que roda lá fora e, consequentemente, teremos menos atualizações e menos funcionalidades.

Por fim, ele ainda teme por impacto para quem precisa lidar com mensagens sigilosas. "Quando você quer denunciar uma coisa, como fará se pode ser rastreado até você? Você vai pensar três vezes antes de ter essa liberdade de fazer, porque seria como colocar o seu nome na carta. Então, denúncias anônimas se tornam mais difíceis, principalmente por WhatsApp", pontua.

Impacto para poucos?

Segundo Ivar Hartmann, coordenador do CTS (Centro de Tecnologia e Sociedade) da Escola de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas) do Rio de Janeiro, o impacto da rastreabilidade para os usuários que trocam mensagens diariamente "é praticamente zero".

"A obrigação é sobre algumas das mensagens, que na verdade só afeta um tipo muito específico e que preenche uma lista longa de requisitos. Das mensagens, menos de 1% preenchem esses requisitos. E isso não prevê afetar mensagem enviada de pessoa para pessoa, tem de ser para grupo", explica.

Hartmann defende que o artigo 10 do PL deve atingir apenas quem colabora com a proliferação da desinformação. "Por exemplo, se eu estou em um grupo e recebo a mensagem, se eu não repassar, nenhum metadado sobre o meu usuário vai ser guardado. O único jeito de algum metadado ser guardado e rastreabilidade é se eu repassar. A intenção é seguir apenas aquela mensagem que viraliza e vira mensagem de massa", diz.

Sobre riscos de violação à privacidade ao conteúdo, ele afirma que a proposta não prevê esse acesso. "O objetivo é a produção de um metadado, nada diz respeito a mensagem: nem o WhatsApp vai saber. Ele vai marcar a mensagem com um código de identificação, mas não sabe o que contém. E isso não vai ser possível de se obter, só por ordem judicial", explica.

Mas Hartmann admite que esse debate precisa ser feito com muita cautela. "A questão é se essa restrição da proteção da privacidade é proporcional ou não. Acredito que o debate merece ser melhor discutido. O PL está tocando em pontos centrais para a sociedade brasileira, que não foram debatidos o suficiente", pontua.