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Ancine: Brasileiro vê pirataria de TV paga como crime aceitável

Set-o-box conhecida como Android TV Box, usado para transformar televisores tradicionais em smart TV e, nesse caso, para piratear sinal de TV paga. - UOL
Set-o-box conhecida como Android TV Box, usado para transformar televisores tradicionais em smart TV e, nesse caso, para piratear sinal de TV paga. Imagem: UOL

Helton Simões Gomes

Do UOL, em São Paulo

01/06/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Carrefour vendia caixinha para piratear sinal de TV paga, proibida no Brasil
  • Rede se comprometeu com Ancine e Anatel a parar de ofertar o produto
  • Agora, outras empresas, como Cnova, B2W e Mercado Livre, podem fazer o mesmo
  • Para a Ancine, pirataria financia crime organizado e prejudica o governo e a indústria
  • Combate é travado, diz superintendente de fiscalização, por cultura de achar que é um crime aceitável

O Carrefour não foi a única rede varejista a ser chamada por agências federais para se comprometer a não vender caixinhas usadas para piratear sinal de TV paga em suas lojas ou exibir anúncios desses eletrônicos em seus sites.

A ação foi tomada pelas agências nacionais do cinema (Ancine) e das telecomunicações (Anatel) após o UOL Tecnologia flagrar uma das unidades do supermercado francês vendendo uma desses eletrônicos. Só que nos próximos meses a Ancine deve fechar acordos similares com outras empresas do segmento, como Cnova (Extra, Ponto Frio, Casas Bahia), B2W (Submarino, Shoptime, Americanas) e Mercado Livre, afirmou o superintendente de fiscalização da entidade, Eduardo Carneiro.

Ele conta que, além de fomentar a produção audiovisual no país, a Ancine monitora ofertas ilegais de filmes e séries pirateadas desde sua criação, em 2001. Ver isso em marketplaces, sites em que grandes marcas permitem que terceiros também vendam produtos, é comum, diz Carneiro. Mas foi a primeira vez, afirma, que a agência se deparou com um eletrônico desses, chamados de set-top-box, oferecido em uma das maiores redes de varejo do país.

A função original do aparelho, uma Android TV, é transformar TVs tradicionais em Smart TVs, mas ele pode ser configurado para interceptar sinal de TV paga - o dispositivo flagrado pelo UOL Tecnologia já era vendido com essa capacidade. Ainda assim, não é isso que torna ilegal a venda desses aparelhos, explica o superintendente. O problema é que esses equipamentos não contam com a homologação da Anatel - cabe à agência emitir esse documento para quaisquer dispositivos que acessem radiofrequência; sem ele, a venda é proibida.

Ser ilegal não impede que os produtos sejam oferecidos em lojas físicas e online nem desencoraja os compradores. Há até quem defenda. Após a publicação da notícia, diversos leitores ironizaram, dizendo que o supermercado não poderia ser responsabilizado pelo que seus clientes faziam com os produtos comprados. Do contrário, não poderia vender facas. E, para o superintendente de fiscalização, é esse o maior entrave ao combate à pirataria.

A maior dificuldade é essa cultura de que a pirataria é um crime aceitável por ter um potencial menor do que outras condutas. Não é aceitável e é irregular. Os malefícios são gigantescos, da ordem dos bilhões de reais para a indústria e para o governo, que deixa de arrecadar tributos. E isso fomenta o crime organizado, o que afeta diretamente o dia a dia da população.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

UOL Tecnologia - A venda da caixinha usada para piratear sinal de TV paga no Carrefour, flagrada pelo UOL Tecnologia, é algo isolado no Brasil?

Eduardo Carneiro - Esse caso específico em uma loja física de uma grande rede foi a primeira ocorrência. Monitoramos os marketplaces das maiores redes e neles é comum, tanto é que a mesma proposta de acordo de cooperação fechada com o Carrefour está em andamento com todas as grandes redes. Em poucos meses, teremos acordo com todas elas. O acordo é para acelerar a retirada desses produtos ilegais e impedir que novos anúncios sejam colocados. A mesma tratativa discutida com o Carrefour já vinha sendo negociada com Cnova (Extra, Ponto Frio, Casas Bahia), B2W (Submarino, Shoptime, Americanas) e Mercado Livre.

Esses produtos são ilegais. No caso do aparelho vendido no stand dentro do Carrefour, a máquina propunha transformar uma TV comum em smart TV, mas tinha configuração para distribuir canais de TV paga de forma ilegal. Ainda que só tivesse a configuração original, já seria ilegal, porque não possuía homologação da Anatel [Agência Nacional das Telecomunicações] para ser comercializada no país.

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Para Eduardo Carneiro, superintendente de fiscalização da Ancine, principal entrave ao combate à pirataria é que brasileiros veem prática como crime aceitável
Imagem: Divulgação/Ancine

UOL Tecnologia - Outras plataformas de venda não foram procuradas?

EC - Com a Amazon, a conversa é bem embrionária. Temos reuniões marcadas, mas não está tão avançada quanto as outras. Também falta o Facebook.

UOL Tecnologia - Algumas pessoas não veem problema no que o Carrefour fez. Elas dizem que um supermercado não poderia ser responsabilizado pelo que seus clientes fazem com os produtos comprados, senão ele deveria ser responsabilizado também por vender facas. Como o senhor avalia isso?

EC - A faca não é um produto ilegal. O que estava sendo vendido naquele stand tem a comercialização proibida no país. Não tem como fazer essa comparação.

UOL Tecnologia - Defensores dessas caixinhas dizem que roubo mesmo é o que as operadoras de TV por assinatura cobram pelas mensalidades.

EC - Eu acho que esse pensamento cai por terra na medida que outros tipos de serviço são ofertados a preço bem inferior aos da TV por assinatura convencional e mesmo assim essas empresas sofrem com a pirataria. Não é só uma questão de valor, é uma questão cultural. As pessoas acham que não tem mal nenhum acessar aquele conteúdo por não ver todo o malefício para a cadeia, tanto de ordem econômica quando pela questão da segurança pública.

UOL Tecnologia - A Ancine tem dimensão do tamanho da pirataria no Brasil?

EC - O nosso combate não é só em relação à compra do aparelho, mas também sobre sites [que distribuem conteúdo pirata]. Em 2017, ocorreram 300 bilhões de acessos a plataformas que distribuem conteúdo pirata em todo mundo. E o Brasil ocupa a quarta posição no mundo todo em número de acesso, com 12,7 bilhões por ano.

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Set-o-box conhecida como Android TV Box vendido no Carrefour
Imagem: UOL

Devido ao mercado ilegal, como um todo, o governo brasileiro deixa de arrecadar R$ 130 bilhões por ano. O combate à pirataria deve ser feito não só pela perda de arrecadação para órgãos públicos, mas também por uma questão de segurança pública. Um relatório da Europol [polícia europeia] aponta que os três maiores financiadores do crime organizado são falsificação de documento, lavagem de dinheiro e pirataria.

Além disso, os malefícios para a cadeia de TV por assinatura são gigantescos. Os prejuízos são milionários, impactam 150 mil empregos na indústria do audiovisual.

UOL Tecnologia - Na reunião em que o Carrefour se comprometeu a parar de vender caixinhas para piratear sinal de TV paga, estavam presentes representantes da Ancine e da Anatel. Mas também os da Polícia Federal. Por que?

EC - A PF tem sido uma parceira nas nossas ações de fiscalização. Boa parte desses equipamentos entra de forma ilegal no país. Há investigações em curso sobre como esses equipamentos entram no Brasil. Parte deles entra com a indicação de que são roteadores de wi-fi ou adaptadores para smart TV. Ainda assim, a comercialização depende de homologação. Nesse caso do Carrefour, um boletim de ocorrência foi feito pela polícia civil e a PF acompanha o caso.

UOL Tecnologia - O que é crime?

EC - A comercialização é ilegal. E, se o objeto comprado for contrabandeado, é crime. Mas a repressão é feita aos vendedores. Nesse caso do Carrefour, o que estava proibido era a comercialização. Se existem outros crimes conexos, isso deve ser investigado pelas autoridades competentes.

UOL Tecnologia - Usar essas caixinhas traz algum perigo aos usuários?

EC - Essas caixinhas não entregam apenas conteúdo de forma ilegal. Uma caixinha dessas, ligadas à rede de wi-fi das residências, tem o potencial de enviar dados dos consumidores a quem opera os aparelhos. São dados de operações bancárias e padrões de consumo que depois são vendidos para empresas de marketing. É aí que essas caixinhas se prestam ao roubo de dados.

UOL Tecnologia - Quais são as dificuldades de combater a pirataria?

EC - A maior dificuldade é essa cultura de que a pirataria é um crime aceitável por ter um potencial menor do que outras condutas. Não é aceitável e é irregular. Os malefícios são gigantescos, da ordem dos bilhões de reais para a indústria e para o governo, que deixa de arrecadar tributos. E isso fomenta o crime organizado, o que afeta diretamente o dia a dia da população.

UOL Tecnologia - Vocês trabalham com alguma meta para diminuir a pirataria no Brasil?

EC - Está dentro das atribuições da agência regular e fomentar todo o mercado audiovisual, não só cinema, mas também TV aberta e fechada, mas também é missão da Ancine combater a pirataria.

No dia a dia, recebemos denúncias como essa que foram feitas pelo UOL de diversos órgãos e até do próprio cidadão. Elas são apuradas e tratadas pela procuradoria da Ancine ou pelos órgãos de segurança pública, quando é o caso.

A luta contra a pirataria é constante. Não é um trabalho por tarefa, que só é terminado depois de atingido um determinado percentual de cumprimento. O que nós entendemos é que a eficácia ao que diz a legislação passa pela integração de todos os agentes envolvidos.

UOL Tecnologia - A legislação deveria melhorar para ampliar o combate à pirataria?

EC - Temos alguns projetos de lei na Câmara [dos deputados] e no Senado. Posso elencar dois. Um torna crime o furto do sinal de TV por assinatura. Outro, que tornariam nossas ações muito eficazes, é o que bloqueia sites que distribuem conteúdo ilegal por via administrativa, como ocorre em alguns países. Para conseguirmos bloquear um site hoje, precisamos ir ao Judiciário, convencer o juiz que houve uma violação de direito autoral e só então obter a ordem de bloqueio. Alguns países na Europa já avançaram na legislação tornando mais rápido o processo de bloqueio sem que seja preciso chegar ao Judiciário.

UOL Tecnologia -Esse projeto que torna crime o roubo de sinal não iria fazer do usuário do 'gatonet' um criminoso?

EC - Não, na verdade, o usuário é quem está recebendo o sinal, o projeto criminaliza só quem rouba o sinal para distribuir, não quem está recebendo.