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Por que a Suécia está deportando talentosos profissionais da tecnologia

Maddy Savage - BBC Work Life

19/01/2020 08h12

Retenção de trabalhadores estrangeiros altamente qualificados é essencial para países como a Suécia, mas não é isso que tem acontecido.

Ele comprou um apartamento e um carro, fez aulas de sueco, matriculou o filho na creche e se dedicou a esquiar para se adaptar às baixas temperaturas. No entanto, pouco mais de três anos depois que sua família chegou à Suécia, e apesar do cargo bem remunerado em uma conceituada empresa de energia e tecnologia, o iraniano Ali Omumi foi convidado a deixar o país.

"Para mim, foi uma grande frustração. Para minha esposa, foi o início de uma profunda depressão", lamenta o especialista em engenharia de vendas.

Omumi, então com 38 anos, recebeu uma ordem definitiva de deportação em 2018, após apelar sem sucesso de uma decisão da Agência de Migração Sueca.

As autoridades negaram o pedido de renovação do seu visto de trabalho com base em um erro administrativo cometido pela empresa de software para a qual ele trabalhava anteriormente, que não forneceu os seguros corretos.

"A deportação me deu a sensação de que eu era um criminoso, embora eu saiba que não sou. Vim trabalhar e pagar impostos, trouxe minha experiência e dinheiro."

Escassez de talentos na Suécia

A Suécia tem uma escassez de profissionais graduados qualificados em áreas como engenharia e programação, o que significa que os empregadores estão olhando cada vez mais além das fronteiras nacionais e da União Europeia para preencher as vagas.

Milhares de trabalhadores estrangeiros qualificados se mudam para o país nórdico a cada ano e muitos decidem que querem permanecer, graças a uma economia relativamente forte e uma elevada qualidade de vida.

Os vistos de trabalho ? necessários para profissionais que não pertencem à União Europeia ? estão inicialmente vinculados a um trabalho específico, mas aqueles que desejam mudar de empresa podem iniciar novas funções enquanto aguardam o processamento da renovação do visto.

Entretanto, centenas de trabalhadores que não são da União Europeia, como Ali, tiveram seus pedidos de renovação negados com base em pequenos erros administrativos cometidos por ex-empregadores durante sua residência.

Além das questões relacionadas a seguro, outros erros que já levaram à deportação incluem pagamentos incorretos de pensão, férias insuficientes ou em excesso e até mesmo conseguir um emprego pelo LinkedIn que não foi anunciado pelo Serviço Público de Emprego da Suécia.

Os suecos chamam essas deportações de kompetensutvisning, que significa "expulsar alguém que possua habilidades exigidas no mercado de trabalho", e a questão desperta calorosos debates há algum tempo no país, especialmente diante da rápida expansão do setor de tecnologia.

A deportação de um desenvolvedor paquistanês em 2016 desencadeou uma petição assinada por mais de 10 mil pessoas, incluindo o cofundador do Spotify Daniel Ek, que mais tarde admitiu que 15 dos principais profissionais contratados de sua empresa foram ameaçados de deportação.

No início deste ano, a Câmara de Comércio de Estocolmo alertou que a tendência poderia prejudicar a economia da capital sueca, enquanto uma filial local da Startup Grind, a maior organização comunitária independente de startups do mundo, realizou um evento chamado Keep The Talent ("Retenha os Talentos", em tradução livre) para protestar contra o fato de a Suécia "drenar talentos internacionais".

Em março, os resultados de uma grande pesquisa da Diversify Foundation, organização sem fins lucrativos que faz campanhas por um mercado de trabalho mais inclusivo, mostraram que 81% dos trabalhadores de fora da União Europeia que participaram da enquete acreditavam que sua saúde ou a saúde de sua família haviam sido afetadas pela ameaça de deportação. Quase 70% disseram que não recomendariam a Suécia como destino para trabalhadores estrangeiros.

"Acreditamos que isso tenha sido prejudicial à reputação internacional da Suécia", diz Alexandra Loyd, advogada do Centrum för Rättvisa, um escritório de advocacia sem fins lucrativos que representa alguns dos trabalhadores afetados.

"Muitas pessoas ? trabalhadores ou empregadores que estão em contato conosco ? se sentem inseguras sobre o sistema jurídico na Suécia."

A raiz do problema, ela argumenta, é a estrita interpretação da Agência Sueca de Migração de uma decisão de 2015 do Tribunal de Apelação de Migração, que afirmou que os vistos não devem ser prorrogados para trabalhadores cujos empregadores não tenham respeitado as normas da indústria. A resolução em questão se referia a dois casos em que estrangeiros foram mal remunerados e foi tomada para proteger os migrantes da exploração por parte de empregadores desonestos.

Este é um dos alicerces da cultura de trabalho na Suécia, que tem uma longa história de sindicatos fortes e acordos rígidos desenvolvidos para proteger os direitos dos trabalhadores.

A resolução resultou, no entanto, em um período de deportações de talentos com base em pequenos erros administrativos. Em 2017, mais de 1,8 mil pessoas tiveram suas renovações de visto de trabalho negadas, embora não seja possível detalhar exatamente quantas delas foram causadas por pequenos erros.

Progresso limitado

A situação melhorou nos últimos dois anos, em parte graças a uma emenda na lei, que permite aos empregadores corrigir erros de forma retroativa. Enquanto isso, uma nova decisão do Tribunal de Apelação de Migração, de dezembro de 2017, determinou que deveria haver uma "avaliação geral" do caso de cada solicitante, a fim de tomar decisões mais equilibradas, em vez de negar automaticamente com base em pequenos erros.

Per Ek, ??porta-voz da Agência Sueca de Migração, diz que entende que alguns trabalhadores estrangeiros acabam "em uma situação muito difícil" se seus vistos são negados. Mas destaca que o método de avaliação geral está "funcionando sem problemas" para limitar as deportações de trabalhadores qualificados, ao mesmo tempo em que permanece fiel à legislação anterior criada para proteger trabalhadores de todos os setores.

"Estamos aqui por uma razão clara. Temos que garantir que a legislação e as leis sejam cumpridas... e estamos fazendo nosso melhor para informar a todos que estão vindo aqui sobre que tipo de regras ou requisitos precisam ser cumpridos", disse.

Pelo menos 550 pessoas tiveram seus vistos de trabalho negados em 2019, incluindo cerca de 50 que trabalham na área de TI e programação, número significativamente menor do que o registrado em 2017 e 2018.

No entanto, a advogada Alexandra Loyd acredita que a agência ainda tem a tendência de "seguir as regras" ? rejeitando casos em que não há precedentes legais e aguardando a recursos nos tribunais, em vez de adotar um olhar mais amplo no início de cada processo de renovação de vistos.

"Há uma falta de previsibilidade no sistema e nas decisões da Agência de Migração", argumenta.

O engenheiro de vendas Ali Omumi está agora de volta à Suécia, onde assumiu um novo cargo na sua antiga empresa, a ABB. Mas garantir seu retorno foi um processo longo. O iraniano se mudou temporariamente para Istambul, na Turquia, com a família enquanto procurava novas oportunidades de trabalho na Suécia e em outros lugares do norte da Europa.

Inicialmente, ele alugou a casa que tinha na Suécia, mas logo foi forçado a vendê-la abaixo do valor mercado, ao ser informado de que havia violado as regras que proíbem a maioria dos proprietários de imóveis no país de alugar suas propriedades, a menos que se mudem por motivo de trabalho, estudo, doença ou para viver com um parceiro ou parentes ? e nenhum dos casos se aplicava a Omumi.

Quando recebeu a oferta de emprego na Suécia, ele foi inicialmente impedido de solicitar um novo visto, porque a Autoridade de Migração disse que ele não estava fora do país por tempo suficiente, decisão que acabou sendo anulada.

O Centrum för Rättvisa está, agora, o ajudando a processar o Estado sueco pela perda de rendimentos durante o período em que esteve fora. É a primeira vez que um trabalhador deportado apresenta uma ação desse tipo ? e ele pode receber cerca de 600 mil coroas suecas (cerca de R$ 260 mil).

"O principal objetivo é reconhecer que o que aconteceu está errado, e garantir que a Agência de Migração não faça mais isso", diz Loyd, que espera que o caso seja um marco.

Se o processo chegar ao Supremo Tribunal da Suécia, poderá estabelecer um precedente para outros trabalhadores deportados que acreditam que foram tratados injustamente.

"Espero que esse processo faça com que os tomadores de decisão elaborem uma legislação melhor, na qual os talentos internacionais possam vir para cá... e permanecer na Suécia enquanto estiverem contribuindo", acrescenta Omumi. "No fim das contas, será uma Suécia melhor para todos".

A Agência de Migração da Suécia prefere não especular sobre o potencial impacto do processo.

"Vamos deixar que eles tomem a decisão primeiro nesse caso, para que possamos comentar", disse o porta-voz, Per Ek.

A agência não comentou sobre os detalhes do caso de Omumi.

Quem ainda é afetado?

Enquanto isso, muitos trabalhadores estrangeiros qualificados permanecem no limbo. A indiana Zena Jose, que é desenvolvedora web, está recorrendo atualmente da decisão que negou a extensão do seu visto.

A jovem de 28 anos atua em uma start-up em Estocolmo, mas trabalhou anteriormente para uma grande empresa na capital sueca, após uma temporada de serviço remoto em Mumbai.

A falha do seu primeiro empregador em cancelar o visto original foi, segundo ela, o erro administrativo que justificou sua deportação.

"É muito desanimador, porque não é minha culpa que isso esteja acontecendo, não fiz nada de errado. Mas sou eu que tenho que pagar por isso", desabafa.

Ela foi aconselhada a não deixar a Suécia enquanto recorre da decisão, pois poderá enfrentar problemas se voltar ao país sem a documentação válida. Isso significa que ela não pôde visitar a família durante o Natal.

"É muito deprimente porque não posso visitar minha família ou meus amigos... e já faz quase um ano", diz.

O australiano Aniel Bhaga, de 34 anos, trabalhou até recentemente como desenvolvedor de negócios da marca de roupas sueca H&M em Estocolmo, mas perdeu uma batalha jurídica de três anos para permanecer no país em outubro, devido a erros administrativos cometidos por start-ups para as quais ele havia trabalhado anteriormente.

"Construí uma rede profissional enorme, uma rede muito, muito boa de família e amigos aqui, construí minha vida", lamenta.

Bhaga agora mora com os pais em Brisbane, na Austrália, e trabalha como freelancer enquanto prepara um novo pedido de visto de trabalho para retomar seu emprego na H&M.

Embora esteja farto desta situação, ele acredita que "tem sorte", uma vez que "há muitas pessoas em situações mais difíceis... que não têm um bom país para voltar", enquanto aguardam o processo.

Uma questão polêmica

O governo da Suécia levou a questão para a esfera política, mas o avanço tem sido lento. Um acordo assinado em janeiro do ano passado entre o Partido Social Democrata, de centro-esquerda, do primeiro-ministro, Stefan Löfven, os Verdes, e dois pequenos partidos de centro-direita previa "resolver o problema" do kompetensutvisional e estabelecer um novo visto para talentos profissionais estrangeiros altamente qualificados a partir de 2021.

Desde então, no entanto, poucos detalhes concretos foram divulgados ? e o ministro da Justiça e das Migrações, Morgan Johansson, se recusou a dar entrevista para esta reportagem.

A migração de mão de obra continua sendo, de maneira geral, uma questão polêmica, com partidos da oposição e sindicatos de trabalhadores apresentando diferentes pontos de vista sobre as principais prioridades para quaisquer mudanças adicionais na legislação.

Alguns querem limitar os vistos, oferecendo apenas a estrangeiros que trabalham em profissões onde há escassez comprovada de mão de obra, enquanto outros querem ainda mais flexibilidade quando se trata de lidar com pequenos erros administrativos cometidos pelos empregadores.

Enquanto isso, uma série de reportagens divulgadas recentemente, como um documentário da emissora sueca SVT sobre a exploração de trabalhadores vietnamitas em um salão de beleza, esquentaram o debate ao expor o que pode acontecer ao se burlar os regulamentos atuais.

Matthew Kriteman, diretor de operações da Diversify Foundation, diz que a Suécia está sendo pressionada por duas forças distintas ? segundo ele, as autoridades ainda "estão descobrindo o caminho de como manter a tradição dos regulamentos trabalhistas", e ao mesmo tempo "integrar o talento estrangeiro necessário para diversificar".

Ele acredita que o caso da Suécia deve ser observado de perto, uma vez que o kompetensutvisning vai muito além de uma série de batalhas judiciais individuais ou debates internos.

"Acho que reflete os desafios da quarta revolução industrial, onde a tecnologia, as ideias e a inovação são mais fluidas", avalia.

"No que diz respeito à mobilidade, esse é um problema do futuro... não há dúvida de que a inovação e os verdadeiros talentos realmente [têm] um mercado enorme com diferentes destinos pela frente."

"Se você quer crescer, prosperar e tornar as empresas globais, precisa de talento internacional para trazer esse 'tempero' extra a todas as empresas e equipes", concorda Aniel Bhaga, alertando que os profissionais estrangeiros na Suécia vão ficar cada vez mais tentados a se mudar para cidades como Berlim ou Londres, se o país nórdico não encontrar uma solução de longo prazo para o kompetensutvisning.

Ele argumenta que "aumentar a conscientização" sobre as regras atuais entre empregados e empregadores é o primeiro passo fundamental, assim como uma "colaboração melhor" entre as grandes empresas e start-ups, sindicatos e políticos do país.

"Vocês estão atraindo todas essas pessoas para cá. Mas também precisam mantê-las aqui... porque é isso que vai impulsionar a inovação na Suécia."

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site da BBC Work Life.

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