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Arte em areia é transformada em videogame experimental por brasileiros

Jogo tem claras inspirações em "Journey" - Reprodução
Jogo tem claras inspirações em "Journey" Imagem: Reprodução

Makson Lima

Colaboração para o START, em São Paulo

22/01/2020 04h00

É inevitável olhar para "Areia: Pathway to Dawn" (PC) e não se lembrar de "Journey", um dos games mais importantes e influentes da última década. Marcelo Raimbault, um dos idealizadores do projeto brasileiro, sabe muito bem disso, ciente de que uma comparação assim traz junto uma carga extra de pressão.

Porém, ele e o restante do Gilp Studio, uma desenvolvedora de Uberlândia, em Minas Gerais, têm uma carta na manga para trazer originalidade ao jogo, que demorou dois anos para ser feito. Ao transformar o conceito de silicogravura (artesanato feitos com areia) em videogame, o grupo criou uma experiência com proposta minimalista e atraente.

Em conversa com o START, Raimbault revelou os segredos do jogo, lançado em 17 de janeiro para PC, via Steam , que pode chamar muito a atenção em 2020.

Fora do padrão

Foi no Firmeza Fest, evento para jogos independentes realizado em São Paulo, em 2019, que conheci "Areia: Pathway to Dawn". Logo de cara, o game chamou atenção pelos visual belíssimo, mas também por outro motivo um tanto mais complicado: "Journey".

Experimentado "Areia" pela primeira vez, o já clássico jogo da thatgamecompany me veio logo à mente, principalmente quando passei por desertos luxuosos a se perder de vista.

No mesmo evento conheci Marcelo Raimbault, um dos idealizadores do projeto, com quem conversei por alguns minutos, os quais foram mais que suficientes para me contagiar com sua empolgação e paixão por sua criação.

"Foi justamente por conta de jogos como 'Journey' que o 'Areia' surgiu, de uma vontade de criar uma nova experiência para esse estilo. Algo fora do padrão 'atirar, matar, pontuar'" foi o que me respondeu quando trouxe "Journey" para o papo.

Pouco tempo depois de imerso em "Areia", já pude sentir sua identidade própria: primeiro por conta dos poderes dessa criatura mágica que eu controlava, as colunas e pontes de areia que criava em um ambiente de oásis que lembra muito as dunas e algumas paisagens do litoral brasileiro.

Areia Dunas - Divulgação - Divulgação
Cenários do jogo são bem contemplativos
Imagem: Divulgação

Arte feita com areia digital

Quem quer que tenha visitado as belas praias brasileiras, principalmente no Nordeste, já se deparou com aquelas obras feitas em garrafas com areias coloridas que formam pinturas.

Silicogravuras - Ana Paula Hirama/CreativeCommons - Ana Paula Hirama/CreativeCommons
Silicogravuras são artesanatos feitas com areia
Imagem: Ana Paula Hirama/CreativeCommons

Foi com esse conceito de silicogravura que os desenvolvedores tiveram a ideia para o jogo. "A partir disso, seguindo a linha de game design mais tradicional, imaginamos que tipo de gameplay encaixaria com essa temática", contou Raimbault. "Nesse ponto, adicionamos os caminhos de areia que o personagem cria, nossa mecânica principal".

Jogar "Areia" no Firmeza era quase um convite a contemplação, a embarcar noutro estado de espírito. O game pode ser esse momento de meditação em águas profundas, tão raro e tão necessário.

Tudo isso só foi possível porque o projeto foi um dos vencedores do primeiro edital para games realizado pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), em 2016. "Sem o apoio da Ancine o "Areia" não sairia do papel", confessou Raimbault. O estúdio mineiro foi contemplado na categoria B do edital e recebeu R$ 500 mil para criar o game.

A importância da Ancine, silicogravuras, narrativa minimalista e a realidade de se criar um jogo tão ambicioso quanto "Areia", foram pautas do papo que o START bateu com Raimbault. Confira:

START: "Areia" se mostra um dos mais ambiciosos e promissores jogos brasileiros do ano. Como a produtora Gilp está lidando com o escopo do projeto? Ficou maior e mais complicado que o antecipado?

Raimbault: Escopo é algo bem complicado quando falamos de jogos, ainda mais quando falamos de empresas menores e apaixonadas pelo que fazem. Quando começamos o desenvolvimento, tínhamos um plano para o projeto, mas o tempo mostrou que muita das nossas suposições estavam erradas. Desde o tamanho das fases até o tempo necessário para chegar no design do personagem.

Por se tratar de um jogo minimalista, quando as peças foram se encaixando ficou claro que tudo precisava estar num nível muito alto, qualquer coisa que fugisse chamava muito a atenção e aumentava as chances de quebrar a imersão do jogador. Como consequência, grande parte do tempo de desenvolvimento foi focado não em criar mais conteúdo, mas sim em polir ao máximo o que estava lá. Tentando colocar em número, diria que o projeto se mostrou pelo menos duas vezes mais complexo do que esperávamos.

Areia Marcelo Raimbult - Reprodução - Reprodução
O game designer Marcelo Spiezzi Raimbault é um dos idealizadores de “Areia”
Imagem: Reprodução

START: É difícil não pensar em "Journey" quando olhamos para "Areia". Como foi e como é lidar com esse tipo de expectativa?

Raimbault: Primeiramente, é uma baita responsabilidade ser comparado com "Journey", afinal ele é um jogo que definiu um novo gênero de forma impecável. E foi justamente por jogos como "Journey" que o "Areia" surgiu, uma vontade de criar uma nova experiência para esse estilo, algo fora do padrão "atirar, matar, pontuar".

Como equipe, nós tivemos que entender desde o princípio que nossos recursos (equipe, dinheiro, tempo...) eram muito menores comparados à produção do "Journey" ou outros títulos do gênero. Então tínhamos que colocar o pé no chão e tomar decisões que funcionassem para nossas limitações. Como disse antes, não foi fácil, afinal sempre queremos fazer um jogo "perfeito". Mas no mundo real, onde fazer jogos é um trabalho, nem sempre isso é possível.

Outro fator importante é a areia. Eu brinco que não tem jeito de fazer um jogo que se passe num cenário com areia que não remeta a "Journey". O impacto dele foi tão grande que é quase impossível não assimilar. Mas como a areia é peça central da nossa trama e referência inicial do jogo (a silicogravura) não podíamos abrir mão dela. Por isso tentamos trazer "originalidade" em outros aspectos do projeto, como no uso da água e no gameplay. Por fim, temos consciência que nosso projeto não tem a mesma proporção, mas esperamos que o "Areia" possa trazer a tranquilidade e alegria aos jogadores que o "Journey" trouxe.

Sempre queremos fazer um jogo "perfeito". Mas no mundo real, onde fazer jogos é um trabalho, nem sempre isso é possível
Marcelo Raimbault, game designer de "Areia"

START: Qual a importância do apoio da Ancine para o projeto? Poderia desenvolver um pouco sobre isso, por favor?

Areia time - Divulgação - Divulgação
Time de desenvolvimento de "Areia"
Imagem: Divulgação
Raimbault: Em resumo, sem o apoio da Ancine o "Areia" não sairia do papel. Na condição que nosso estúdio se encontrava, era muitíssimo complicado conseguir investimento de alguma outra fonte. Não tínhamos portfólio que deixasse um investidor ou publicador seguros da decisão em um projeto desse porte. Agora, pelo edital olhar vários pontos além do histórico de vendas, conseguimos balancear nossa nota e ficar entre os selecionados.

Ficamos quase que dois anos inteiros no desenvolvimento do "Areia" com uma equipe que chegou a ter até 10 pessoas envolvidas de diferentes formas. Custear toda essa estrutura não é uma tarefa fácil, sem a verba e segurança que o edital nos trouxe, não teríamos condições financeiras para tocar um projeto desse porte. Ficaríamos presos em projetos menores e de menor relevância até conseguirmos verba/coragem suficiente para arriscar num projeto assim.

É importante entender que o edital da Ancince funcionou como um catalisador da cena de desenvolvimento no Brasil, ele fez coisas que demorariam 8-10 anos acontecerem num espaço de 2-3 anos. A partir desse ano, vamos começar a colher os frutos dessa iniciativa que, assim como qualquer outra coisa, vem de forma gradual com erros e acertos.

START: Todo aspecto sânscrito, até mesmo religioso, presente em "Areia" estava nos planos desde o início? A meditação, as mandalas, flores de lótus? Como foi incorporar isso ao gameplay?

Raimbult: O "Areia" começou com uma ideia bem simples relacionada à silicogravura (artesanatos feitos com areia). A partir disso, seguindo a linha de game design mais tradicional, imaginamos que tipo de gameplay encaixaria com essa temática. Nesse ponto, adicionamos os caminhos de areia que o personagem cria, nossa mecânica principal.

Com a mecânica testada e com a certeza de que era ela sólida o suficiente para criarmos um jogo ao redor dela, passamos para a definição da narrativa. É difícil recordar com exatidão, mas esse aspecto sânscrito surgiu de uma conjunção de ideias e vivências dos membros da equipe e encaixou como uma luva no que imaginávamos para o jogo. Lembro que quando fomos pensando em formas de incorporar isso ao gameplay, tudo foi fazendo tanto sentido que até achamos estranho. Tinha que ter algo errado por ali... Mas não tinha, não, realmente havíamos encontrado um caminho muito interessante para utilizar como base para todas as decisões futuras relacionadas ao "Areia".

Ficamos quase que dois anos inteiros no desenvolvimento do "Areia" com uma equipe que chegou a ter até 10 pessoas envolvidas de diferentes formas
Marcelo Raimbault, game designer de "Areia"

START: De onde nasceu a ideia dos poderes do protagonista? Criar colunas, caminhos de areia, e como a água entrou na jogada, de acordo com as interações e alterações com o cenário?

Raimbault: Próximo ao período que estávamos pensando em novos ideias para o estúdio, eu tinha acabado de terminar "Grow Home" (quem não conhece, vale a pena jogar). Nele, você cria galhos de uma árvore para subir e progredir na história. Eu achei aquela mecânica muito interessante, porém a execução dela não tinha me agradado tanto, controles um pouco confusos e não tão explorada no contexto do jogo. Em uma das "mini jams" de 3 horas que fazíamos para descobrir novas mecânicas, decidi fazer o protótipo dessa ideia com algumas modificações que faziam mais sentido para mim.

O resultado final foi bem empolgante e motivador. Todos que estavam por lá gostaram de brincar com o que foi criado e reconhecemos de imediato o potencial da mecânica.

A água entrou na jogada como uma mistura de temática e gameplay. Na temática, ela passava a ideia de estruturas que se formam ao misturar areia com água. No gameplay, ela servia como um "recurso" para limitar a criação de caminhos, além de sustentar visualmente o porque das estruturas se desfazerem. Assim como a história, muitas coisas aqui se encaixaram de forma natural e não tão antecipadas, o que nos ajudou a ter mais segurança para seguir em frente com a ideia. De resto, muitas mudanças surgiram quando colocávamos os protótipos na mão dos testadores. Só depois de várias rodadas de testes que fomos chegar num resultado muito próximo ao que temos no jogo final hoje.

START: É difícil passar uma mensagem, contar uma história, de forma tão minimalista e singela quanto a encontrada em Areia?

Raimbault: Esse foi provavelmente um dos nossos maiores desafios. Não tínhamos tanta experiência nessa área, nosso foco maior sempre tinha sido jogabilidade. Narrativa não era nossa praia. Felizmente, tínhamos uma boa diversidade na equipe que sempre trouxe novas ideias. Sem contar os vários jogos com estilo similar que pudemos nos inspirar e aprender com eles. Muito importante também foi feedback dos testadores. Com ele, aprimoramos nosso arco de narrativa e colocamos mais cenas que incitasse a curiosidade dos jogadores.

A simbologia forte atrelada à meditação e ao sânscrito também contribuíram para conseguirmos passar certas emoções de forma indireta, sem precisar de muita explicação por nossa parte. O contexto e simbologia são quase que universais para as pessoas antes mesmo de conhecerem o jogo. Por fim, diria que chegamos no resultado atual através de muita experimentação de até onde precisávamos ir. Começamos com quase nada e fomos adicionando aos poucos até chegar num cenário que agradou aos testadores.

Areia cenário - Divulgação - Divulgação
O visual é um dos pontos fortes do jogo
Imagem: Divulgação

START: "Areia" é um jogo belíssimo - os desertos são vastos e luxuosos. Quais foram as grandes dificuldades em alcançar esse tipo de visual?

Raimbault: A maior dificuldade de todas foi balancear gameplay e visual. Criar um cenário "só bonito" é relativamente "fácil", porém criar um cenário que seja bonito e funcional no nível de gameplay é uma tarefa bem mais complicada. Queríamos, sim, um jogo muito bonito e que cada fase passasse certas emoções. Porém, tínhamos que ser fieis ao tipo de gameplay que acreditávamos ser o melhor para o jogo. Em alguns locais, tivemos que abrir mão de visuais mais bonitos por visuais mais funcionais. Foram várias versões de cada fase que acabaram descartadas até encontrarmos um equilíbrio entre os dois.

Do lado técnico, como nossa equipe não era muito grande, tomamos algumas decisões como o uso de meshes procedurais (feitas no houdini) para acelerar nosso workflow. A maioria dos shaders criados também tiveram que levar em conta esse cenário procedural. Juntando tudo isso, existiam coisas que simplesmente não tínhamos recursos para executar e por isso precisávamos decidir entre o quanto queremos ceder entre o bonito e o funcional em termos técnicos.

Em suma, cada fase foi um desafio diferente por suas peculiaridades e, por isso, cada uma teve seu conjunto único de decisões entre visual, gameplay e limitações técnicas/recursos.

Criar um cenário "só bonito" é relativamente "fácil", porém criar um cenário que seja bonito e funcional no nível de gameplay é uma tarefa bem mais complicada
Marcelo Raimbault, game designer de "Areia"

START: A trilha sonora em "Areia" é absolutamente inerente ao jogo em si - diria que sem ela, o impacto teria sido muito atenuado. Pode falar um pouco mais sobre a importância da trilha sonora?

Raimbault: Acredito que uma experiência só é completa quando nossos sentidos são estimulados de forma coerente. Tudo no design de um jogo precisa trabalhar em conjunto, criar uma única identidade para conceber o famoso "gestalt" (conjunto percebido como maior que a soma de suas partes individuais). Justamente por isso, a trilha sonora é sempre uma grande preocupação de todos os nossos projetos, do mais simples ao mais complexo.

No caso do "Areia", a trilha precisava passar certas emoções de acordo com a situação, além de contribuir para a temática e permitir uma experiência imersiva e até certo ponto relaxante. Usamos a trilha como o primeiro e principal fator para estabelecer a expectativa do jogador em relação ao jogo. Logo na abertura, a trilha já enfatiza que o "Areia" é uma experiência mais calma, relaxante e diferente do que estamos acostumados nos jogos. No decorrer do jogo, ela continua relembrando o jogador sobre o teor daquela experiência, tentando sempre garantir a imersão.

Felizmente, contamos com a parceria do Rodrigo Nepomuceno, o Cheba, que desde nosso primeiro projeto nos ajudou a criar trilhas sonoras marcantes. Quem estiver atrás de alguém para compor uma trilha sonora, já sabe quem procurar!

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