O nome dele é hit

Com mais de 600 músicas gravadas, Tierry está metido com quase tudo que faz sucesso na música brasileira

Breno Boechat (texto) e Julia Rodrigues (fotos) Colaboração para Splash, no Rio Julia Rodrigues/UOL

Eu comia MPB com farinha. Minha mãe me fazia ouvir de tudo.

É nas memórias da infância em Nilo Peçanha, interior da Bahia, que Tierry encontra suas principais referências, enquanto se prepara para o futuro.

"Meu avô era apaixonado pelo forró de Luiz Gonzaga e de Dominguinhos, pelo sertanejo de Zezé Di Camargo e Luciano, e de Milionário e José Rico. Minha mãe sempre cantou muito, chegou a ganhar prêmio. Gosta de Chico Buarque, Caetano, Lô Borges, Quarteto em Cy... Eu ouvi demais, Nossa Senhora!".

A inspiração para compor, no entanto, veio de figuras que Tiehit —apelido que ganhou por emplacar tantos sucessos— classifica como "rebeldes geniais". Enquanto cantarola Bezerra da Silva, o baiano cita nomes como Belchior, Cartola, Carlinhos Brown e Odair José para explicar a origem de ideias que mais tarde resultaram em sucessos como "Rita", "Cracudo" e "Hackearam-me".

Eu ouvia muito Bezerra da Silva... 'Meu vizinho jogou uma semente no seu quintal'... 'Olha que eu mandei minha nega pro inferno e o diabo não quis aceitar'... Eu gostava da ousadia de falar essas coisas, sabe? Eu gostava de ouvir isso. Esses absurdos soavam para mim como algo rebelde, diferente, à frente do seu tempo. Isso já me seduzia.

Aos 31 anos recém-completos, consagrado como um dos compositores mais bem-sucedidos do Brasil nos últimos anos, ele agora diz estar um pouco mais "egoísta", dedicando-se à carreira solo como cantor. E admite também que, pela primeira vez, vai recorrer a outros compositores para dar uma renovada nos ares dos próximos trabalhos.

Com dois álbuns prontos, previstos para os próximos anos, Tierry divide a agenda entre ensaios, lives e um projeto inspirado em contos de grandes autores da literatura brasileira.

E a gente está falando de gente importante mesmo: Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues são alguns dos escritores homenageados no EP de sofrência, ainda sem nome, que o baiano lança ainda este ano. A ideia veio do amigo e jornalista Leo Dias, que colocou Tierry em contato com o professor universitário carioca André Luís Júnior.

"O Leo me apresentou a um grande amigo dele, o André Luís Júnior, que é professor e amante da literatura, poeta. Ele falou para pegar essa minha sofrência e misturar com algumas obras da literatura brasileira, que a juventude que curte o meu som não conhece. Já temos três músicas prontas, serão cinco", conta Tierry, que adianta uma das obras homenageadas [leia a letra]:

Já compus sobre 'A Dama do Lotação', de Nelson Rodrigues. Uma hora o personagem fala: 'Você pode me trair, eu mereço. Só não me traia com alguém que eu conheço'. Isso mexe muito comigo. É algo que eu gostaria de ter escrito.

Estourado com mais de 1,2 bilhão de visualizações no YouTube e 4 milhões de ouvintes mensais no Spotify, Tierry bateu um papo com Splash para contar sua história, revelar seus segredos de hitmaker, relembrar o momento mais difícil da vida, quando o filho ficou por quatro meses em uma UTI. Agora, o músico comemora o sucesso: "Eu sabia que tinha alguma coisa guardada para mim na música quando subi pela primeira vez no palco com a Ivete".

'Eu quero essa música para mim'

Muito antes de conhecer Ivete Sangalo, Tierry usava a música para se enturmar no colégio. A mãe, Dona Teca, queria que o garoto estudasse em escola particular, algo que não existia em Nilo Peçanha. Ele, então, foi estudar em Valença, uma das "capitais" do interior baiano.

Sofri preconceito por ser do interior do interior. Valença já é uma cidade maior. Quando cheguei no colégio, os meninos me jogaram na lata de lixo, dizendo que eu era da roça. O que me fez ser aceito foi a minha arte. Mas era só brincadeira, resenha com os amigos.

A "resenha" evoluiu quando ele entrou para a faculdade de Jornalismo, dessa vez em Salvador. Para pagar a mensalidade, Tierry estagiou no estúdio de Alan Toreba, percussionista da banda de Saulo Fernandes e que, na época, tocava na Banda Eva. Grandes nomes da música baiana gravavam nesse estúdio, o que fez brilhar os olhos do jovem que escrevia suas primeiras letras.

Em um desses encontros, em 2010, Tierry conheceu a galera do Fantasmão, banda de suingueira de sucesso na Bahia. Ele foi chamado para o backing vocal do grupo, mas em pouco tempo já estava à frente dos palcos e trios, fazendo shows para milhares de pessoas.

A grana começou a entrar. "Comprei um apartamento, um carro. Falei: 'Mãe, olha a música dando certo'. Ela me apoiou demais, porque viver de música era uma coisa que muita gente na família já havia tentado", conta Tierry, que pouco tempo depois trancou a faculdade para se dedicar ao Fantasmão.

Foi quando ele decidiu chamar o amigo Filipe Escandurras para estudar ritmos africanos e caribenhos. Os dois mergulharam em gêneros como a kizomba, o kuduro e o zouk e desse rolê saiu a música que apresentou Tiehit para o país inteiro: "Dançando".

O Marcio Victor, do Psirico, amou a música e quis gravar com a Ivete, que falou: 'Marcio, eu quero essa música para mim, eu vou gravar com a Shakira'. Acabou que ele fez o arranjo. Foi minha primeira música gravada e mudou a minha vida.

"Dançando" foi a primeira de uma sequência de hits nas vozes de outros artistas. Em 2015, ele teve cinco faixas entre as mais tocadas do país, todas em estilos diferentes: do forró ao reggaeton, passando pelo sertanejo:

  • Jorge & Mateus - "Os Anjos Cantam"
  • Lucas Lucco - "Vai Vendo"
  • Claudia Leitte e Luan Santana - "Cartório"
  • Simone e Simaria e Wesley Safadão - "Não Vou Mais Atrás de Você"
  • Henrique e Diego - "Senha do Celular"
Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

O Coringa

A essa altura, Tierry já era um dos compositores mais procurados do Brasil e seguia à frente do Fantasmão, que também não parava de crescer. A versatilidade rendeu a Tierry o apelido de "Coringa". Para fazer jus ao nome, o cantor desenvolveu um método próprio, quase uma receita pro sucesso, que aplicou aos mais variados estilos.

Enquanto a banda dominava a Bahia, Tierry viajou o país atrás dos artistas mais populares para apresentar suas músicas. Ele conta que, na hora de vender uma canção, o mais importante é transmitir a emoção.

Pelo WhatsApp é difícil passar a emoção certa. A gente subia na mesa, levantava as mãos como se fosse o público cantando. Os caras pensavam: 'Esses baianos são umas figuraças'. Foi aí que começou essa loucura.

Mas Tierry queria mais. Ele lembra que o empresário do Fantasmão tentou mantê-lo na banda, aumentando o cachê dele para até R$ 2 mil por show, mas não adiantou: "No Fantasmão a gente pintava o rosto. Eu queria voar sozinho e com o meu estilo".

Com o álbum "Na Farra ou Na Sofrência", lançado em 2015, a carreira solo, enfim, começava, dessa vez sob a alcunha de Tierry Coringa. Tudo caminhava bem, até que ele passou pelo maior drama de sua vida: a internação do filho, Adryel, então com apenas 3 anos.

Eu digo que quando morrer vou para o céu, porque já vivi o inferno.

Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

Sobrevivendo no inferno

Tierry não costuma dar muitos detalhes sobre a doença do filho, que o obrigou a parar tudo em junho de 2017.

Meu filho teve um choque séptico. Ele passou quatro meses na UTI, teve cinco paradas cardíacas, passou 45 dias na ECMO. Teve quatro bactérias, problemas em todos os órgãos, precisou fazer diálise...

O cantor se emociona ao mostrar o quarto gamer que está montando para Adryel, 7, na casa deles em Salvador, e se lembra do dia em que foi chamado para conversar com a equipe médica, que não via mais saída para o menino.

Ele ficou entre a vida e a morte. Por várias vezes quiseram desligar a máquina, porque ele não respondia à terapia. Eu morava dentro da UTI, praticamente. Fiquei com a barba e o cabelo gigantes, não tinha cabeça para nada. Pedi para distratar todos os shows.

A cura do filho renovou as esperanças do baiano, que retomou a carreira. Naquele ano, Tierry "virou" mais algumas músicas com outros artistas. "Moça do Espelho" estourou em três versões diferentes: no modão de Zé Neto e Cristiano, no pagodão do Harmonia do Samba e no forró de Jonas Esticado. Já "Casado, Namorando, Solteiro" foi uma das músicas mais tocadas do ano na voz de Wesley Safadão.

A expectativa era grande, mas a primeira experiência como artista de um grande escritório sertanejo foi frustrante. Se hoje Tierry faz parte do renomado casting da Workshow, no fim de 2017 ele esperava deslanchar por outra gigante agência de artistas do mundo sertanejo, a AudioMix. A relação terminou pouco tempo depois, com o cantor pagando uma multa que, segundo ele, chegou a quase R$ 500 mil.

Paguei a maior grana, até brinco que tive que dar parte do dinheiro da educação do meu filho para pagar essa multa. Mas eu só vi o Marquinhos, da AudioMix, uma vez, no dia em que assinei o contrato.

Empolgado com o sucesso de "Vende-se Esta Casa", que na época lhe rendeu R$ 200 mil só no YouTube, e de outras faixas do primeiro disco solo, o Coringa aguardava um bom investimento dos empresários para rodar o Brasil com seu show e desfilar suas composições. Ele revela que, no entanto, se sentiu desvalorizado.

"Meu segundo disco não fez tanto sucesso quanto o primeiro e eles me colocaram na geladeira. Não gosto de ser refém na mão de ninguém e decidir distratar com eles".

Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

Acertando na mosca

Um ano após a recuperação de Adryel, em 2018, Tierry usou a caneta afiada na sofrência para se sobressair no disputado mercado sertanejo. Foi nessa fase que ele encontrou uma definição para si próprio: "uma mistura de Rogério Skylab com Marília Mendonça":

O baiano praticamente se mudou para Goiânia, onde se juntou a grandes produtores. Dessa incursão à capital sertaneja saíram dois sucessos em forma de bachata, ritmo latino que dominou a cena: "Vende-se Esta Casa", que ele mesmo gravou, e "Cem Mil", que Gusttavo Lima fez questão de pegar. A música foi a mais tocada das rádios em 2019, na voz do Embaixador, que retribuiu:

Gusttavo levou 15 dias para responder e mandou um áudio de quase dois minutos falando que essa seria a música da vida dele. Disse que gravaria 10 músicas comigo se eu desse essa para ele. Ele repaginou a música, mas foi um cara muito justo comigo, não quis percentual alto nem nada. A roupagem de bachata que ele deu à canção foi o que garantiu o sucesso. Depois a gente gravou 'Acertou na Mosca' juntos.

Foi quando Tierry então decidiu se reaproximar de seus ídolos de infância, suas referências na composição de letras e melodias surpreendentes, os tais "rebeldes geniais". No fim de 2019, ele resolveu apostar nas suas músicas mais "diferentonas", que outros artistas não teriam coragem de gravar.

Quem iria gravar 'Cracudo'? Ou 'Tifani'', a história de uma garota de programa desiludida?

Tierry gravou o álbum "Acertou na Mosca" no "espaço gourmet" de sua casa, desembolsando apenas R$ 1,5 mil. Ele lembra essa história aqui:

Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

Mirando em Caetano e Gil

"Cracudo" (dos versos "se eu virar cracudo / eu vou fumar esse seu coração de pedra nem que eu venda tudo") estourou na Bahia, ficando em terceiro no concurso de Música do Carnaval de 2020. A primeira também era dele: "O Mundo Vai", que dominou os trios naquele ano na voz de Ivete. "Eu cheguei a fazer 30 shows por mês nessa época, pouco antes de a pandemia chegar. Eu estava estourando quando começaram a falar da doença".

Aliás, Tierry considera que foi justamente no início da pandemia que rolou mais uma grande virada de chave na sua carreira, com seu primeiro single de platina duplo.

Eu vi um meme que falava assim: 'Ah, Coronavírus? Beleza, mas eu já peguei coisa pior'. Eu achei isso muito foda e rapidinho fiz 'Eu Já Peguei Coisa Pior'. Foi essa música que me fez estourar pro Brasil inteiro.

Ao contrário do que diz o hit, porém, a covid-19 deixou Tierry, que já teve a doença duas vezes, bem assustado. Na primeira, ele chegou a ficar com 25% dos pulmões comprometidos e precisou passar por um tratamento mais cuidadoso, sem necessidade de ser internado. Na segunda, o cantor conta que sentiu apenas dores no corpo.

Apesar da ausência de shows, os números de Tierry só cresciam e foram turbinados com a chegada de "Rita", música de trabalho do álbum "Aô Saudade da Mãe dos Meninos", que ele acaba de inscrever no Grammy, junto com a versão em DVD de "Acertou na Mosca".

A "música da facada" escancarou a porta que havia sido aberta pelo disco anterior: "Rita" hoje tem mais de 70 milhões de reproduções no Spotify e 160 milhões de views no YouTube.

Ansioso para voltar aos palcos, Tierry se organiza para o futuro. Os dois próximos discos já estão prontos e com os nomes definidos: "O Pai das Crianças" e "O Ex-Marido da Rita". Ele aproveita para dar uma palinha do que vem por aí, com pérolas como "XVídeos", "Peixe-Boi" e "Luísa Mell":

Agora, ele se divide de vez entre sua carreira solo e as composições para outros artistas —sua listinha de colaborações já ultrapassa os 250 nomes.

Tenho feito mais música para mim, mesmo. Está na hora de guardar um pouquinho. Eu agora sou mais ciumento. Quem quiser música minha vai ter que gravar comigo [risos].

Mas ele mira alto.

Chitãozinho e Xororó, Leonardo, Caetano e Gil são mestres que eu sonho ver cantando músicas minhas. A Bethânia cantou uma composição minha ['Vingança do Amor', gravada por Pablo e Ivete Sangalo] e foi uma das maiores realizações da minha vida. Vou contar para o meu filho e para os meus netos.

A caneta não para, muito menos o gravador de voz do celular: "Eu brinco que só a pasta 'gravador' do meu telefone vale umas três casas dessas aqui. Eu boto tudo lá".

A inspiração para as mais românticas, inclusive, agora tem nome e sobrenome: Gabi Martins. O casal de cantores está junto desde o fim do ano passado e o hitmaker está "com os quatro pneus arriados" pela ex-BBB: "Ela me inspira todos os dias".

Vaidoso e confiante de que, dessa vez, nada vai ser capaz de frear o sucesso, Tierry investe no visual. Recentemente, ele chamou atenção ao fazer harmonização facial, além de um transplante capilar. Outra novidade é o acerto com uma grande gravadora para os próximos trabalhos. Misterioso, ele diz que negocia com três grandes empresas para só agora deixar de ser artista independente.

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