O vaso bom que não quebra

MC Neguinho do Kaxeta sobreviveu a 11 tiros e tem trajetória longeva - algo raro no mundo do funk

Guilherme Lucio da Rocha De Splash, em São Paulo Divulgação

Se o NK não morreu, foi livramento de Deus

NK é a sigla para Neguinho do Kaxeta, nome artístico de Júlio César Ferreira, 34. E o livramento que o MC passou foram 11 tiros - sete atingiram o cantor - numa emboscada em 2012.

Como sequelas, apenas a lembrança do incidente e falta de explicações para o motivo do crime.

De verdade? Eu nunca fiz nada para ninguém, nunca investi em nada de errado, não imagino por que fui alvo. Me ligaram várias vezes me ameaçando, falando que eu iria morrer. Mas não botei fé.

Sobreviver e se reinventar é uma espécie de mantra para o cantor. Com mais de 20 anos de carreira, ele já passou por todas as fases do funk em São Paulo. Ele estava lá quando tudo começou, na Baixada Santista, e segue como pilar até hoje.

As duas décadas destoam da cultura paulistana do baile funk , que ainda não produziu artistas com mais de 10 anos de carreira em alto nível - com exceção de Kaxeta. E os números atestam isso: só no YouTube, as músicas do funkeiros somam mais de 1 bilhão de visualizações - isso mesmo, com b de bola.

Com uma carreira tão longeva e músicas com mensagens de motivação, o cantor é visto como uma espécie de professor que aprendeu na prática todos os caminhos.

Mas ele rechaça o rótulo. Inclusive, acredita que está alguns passos atrás da nova geração, que sempre apresenta para ele novidades e tendências que agradam o público.

O MC diz que o grande segredo é manter a mente aberta. Para ele, professor é só Deus.

Não coloco na balança que tenho 20 anos, que sou professor. Os mais novos têm essa consideração? Legal. Mas para um professor ensinar, ele tem que ser sábio. E não sou esse sábio todo, eu aprendo demais com a molecada de hoje. Não quero ser visto como um MC "retrô".

NK

Madrugada de 25 de junho de 2012

Kaxeta voltava de um show em Guarulhos, na Grande São Paulo, e estava na sua cidade natal, São Vicente. No carro, ele e mais duas amigas.

Após sair de um posto de gasolina, ele nota que um carro estava o seguindo. Ao passar em uma lombada, os veículos se emparelham. Começa uma sequência de tiros.

O primeiro tiro me atingiu nas costas. Fiquei meio grogue e tentei abaixar o vidro. Quando fiz menção de abaixar, veio a rajada de tiros. O vidro foi todo caindo para dentro do carro, cortando todo mundo que estava dentro. Nisso, consegui passar da segunda para terceira marcha e escapei. Foi tudo muito rápido. Na hora, nem tive noção de quantos tiros eram, só pensei que ia morrer.

MC Neguinho do Kaxeta

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No total, foram 11 tiros

Três ficaram na porta do carro de Kaxeta, três atingiram o cantor de raspão e quarto acertaram o cantor em cheio. Nenhuma das acompanhantes foi atingida, apenas ficaram feridas com os estilhaços dos vidros.

A primeira reação de Júlio César foi ir à casa da sua mãe, que fica próximo do incidente. Ele diz ter chegado lá ainda sem entender muito bem o que tinha acontecido. Seu padrasto o levou para o hospital.

Eu só falava que era um carro cinza e que iriam me matar. No hospital, eu fiquei apenas em observação. Estava com uma bala alojada no braço, com muito vidro no olho, e fui para casa assim. Fui curado no automático, coisa de Deus.

Mas a emboscada a Kaxeta não foi algo isolado. Entre 2010 e 2012, quatro MCs e um DJ da Baixada Santista foram assassinados a tiros - DJ Felipe, MC Felipe Boladão, MC Duda do Marapé, MC Primo e MC Careca. Todos no mês de abril e, em nenhum dos casos, a Justiça conseguiu esclarecer quem foram os autores.

No velório do penúltimo MC assassinado, o MC Primo, em 19 de abril de 2012, o funkeiro que veio a ser assassinado na sequência, MC Careca, recebeu uma ligação anônima informando "que ele seria o próximo". À época, todos os artistas ficaram com medo, muitos pararam com shows e até fugiram da Baixada.

Mas Kaxeta não.

Eu pensava: os caras não fizeram nada de errado e morreram, fica de boa para não acontecer contigo. Mas não tive essa maturidade. Falei para minha mãe que não tinha esse medo no coração e continuei fazendo meus bailes. Não passava pela minha cabeça que eu seria alvo.

NK

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'Só queriam ver se eu estava vivo'

À época da emboscada, Kaxeta estava com a música "As Novinha Tão A Mil" em destaque. Ele conseguiu fazer a transição de funkeiro conhecido pelas músicas falando do cotidiano sofrido da favela para um artista mais versátil, que também sabia descrever a vida de um bon vivant.

Mas ver a morte tão de perto o fez pensar qual caminho seguir. Se bem que o MC não teve tanta dúvida assim.

Eu ia fazer o que da minha vida? Não tinha nem carteira de trabalho. Sempre quis viver da música. Falei para minha mãe que era isso mesmo e, quando tivesse com a mínima oportunidade, eu iria voltar aos palcos.

Após receber alta do hospital, não se passou nem uma semana que o cantor estava em casa quando seu telefone tocou. Ele, que era seu próprio empresário, tinha uma agenda de shows lotada, com datas para daqui 15 dias. Um dos contratantes queria saber se Kaxeta, após ser alvo de quase uma dezena de tiros, iria cumprir o compromisso de subir no palco nos próximos dias.

Esse empresário me ligou e quis saber se iria fazer o show que estava marcado para dali 20 ou 30 dias. Eu disse que iria e que ele poderia confiar na minha palavra. Só que chegou a data e eu ainda estava fodido, não consegui ir. Mas não deu uma semana depois, eu consegui subir no palco. Nos primeiros shows, eu queria cantar como nunca e o povo só querendo confirmar que eu estava vivo, ficar tocando em mim. "O bichão está vivo mesmo", eles falavam.

NK

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'Desci do meu pedestal e vi que tinha que mudar'

Neguinho do Kaxeta começou sua carreira no final dos anos 1990. Primeiro, era apenas Neguinho e fazia dupla com Lan. Depois, embarcou na carreira solo e "ganhou" o complemento Kaxeta no nome artístico graças a MC Primo. Kaxeta é o nome de uma favela em São Vicente, SP, onde Júlio César nasceu.

O MC foi um dos principais nomes da cena da Baixada Santista no final dos anos 2000, que a época disputava a atenção da massa funkeira como polo cultural do ritmo com o Rio de Janeiro. Com a sequência de mortes no final da década e o funk subindo a serra e se fortalecendo na capital paulista, os cantores do litoral tiveram dificuldade para se reinventar.

À época do seu atentado, Kaxeta já tinha conseguido dar uma volta na carreira. Antes preso ao chamado funk consciente, ele via a vertente ostentação conquistar a galera. O jeito foi se adaptar aos novos tempos.

Ele é um dos poucos MCs com mais de 10 anos de carreira e com trabalhos de grande impacto até os dias de hoje. Uma das suas músicas mais recentes, "Sou Vitorioso", em parceria com o MC Lele JP, tem mais de 200 milhões de visualizações no YouTube. Kaxeta atribuiu essa longevidade a sua mente aberta. Com ele, não tem essa de que "no meu tempo é que era bom".

Não gostava muito de internet, mas abri minha cabeça. Lembro que uma das primeiras coisas que vi quando comprei notebook, foram os videoclipes da KondZilla. Desci do meu pedestal e vi que tinha que mudar, me adaptar ao que acontecia no momento.

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De quem é a música?

Celeiro da vertente consciente, o litoral paulista formou artistas como MC Barriga, Danilo e Fabinho, Renatinho e Alemão e outros diversos cantores que marcaram época dos anos 2000.

Num mundo onde a internet mal engatinhava nas periferias, a troca de informação era no boca a boca.

E foi nessa época que alguns sucessos nascidos na Baixada, chegaram no Rio de Janeiro com outros donos.

Kaxeta conta que alguns MCs cariocas vinham para o litoral de SP, mapeavam o que estava em alta, e voltavam para sua cidade levando as músicas como se fossem suas criações. Kaxeta passou por isso com a canção "A Firma é Forte", reproduzida em terras cariocas pelo MC Tikão.

Um amigo meu estava viajando pelo Rio de Janeiro e me falou que a música estava tocando muito por lá. De início, fiquei de boa. Eu conhecia o Tikão e o irmão dele, o MC Frank, acreditava que era uma forma de divulgar meu trabalho. Quando saiu o DVD da Furacão 2000 e vi ele cantando minha música, foi que tive noção do que estava acontecendo. Eu me imaginei estar ali, porque estava na luta também, era um sonho. O Tikão dizia que foi culpa da gravadora [a própria Furacão 2000], que registrou a música no nome dele. Mas por que ele não avisou do engano? Por que ele não me chamou para subir no palco com ele?

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Hoje, o episódio é tratado até com certa pitada de humor pelo MC. Porém, ele lembra que a confusão rendeu dinheiro aos cariocas, já que eles realizavam o registro das obras junto ao Ecad.

Eu pedi à Justiça divina resolver. Era uma época que as músicas estavam muito regionalizadas, eles acreditavam que ninguém ia saber. É algo que tirei a mágoa do meu coração, mas atrasou meu lado. Na época, já existia um mercado legal de registro de músicas e poderia ter ganho um bom dinheiro para quem estava começando.

Durante 1h30 de conversa, Kaxeta falou mais de cinco vezes sobre seu desejo de parar de cantar funk.

Depois de sobreviver a tiros, ao sobe e desce do funk, treta com suas músicas e outras tantas histórias, Kaxeta fala sobre o futuro com dúvidas. Ele, que ainda tem contrato com a produtora GR6, pensa em ser empresário de novos MCs. Mesmo antes de abrir sua própria empresa, ele já está ajudando novos cantores e compositores, dando espaço e fazendo parceria com esses artistas.

Perguntado de que maneira ele se vê na história da cultura, ele precisou ser lembrado por este repórter que sua carreira é fora da curva na cultura do funk paulistano, que costuma colocar prazo de validade na carreira de MCs.

Você falando isso [sobre longevidade] eu boto fé, mas não consigo ficar pensando nisso. Às vezes penso no que mais posso contribuir. Além disso, tenho que acompanhar a molecada - e não é nada fácil.

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