Artistas falsos, músicas roubadas: o crime que assombra a música sertaneja
Um esquema de roubo em massa de composições está atingindo o mercado sertanejo, o mais popular e rentável do Brasil.
Músicas inéditas, que circulam no meio artístico antes de serem escolhidas por cantores, apareceram publicadas por perfis falsos em plataformas de streaming, acusam compositores.
O compositor costuma gravar uma guia — versão preliminar — logo após compor uma canção. São elas que vêm sendo roubadas, na maioria das vezes antes de serem vendidas.
O UOL encontrou no Spotify uma rede de 209 falsos artistas que publicaram 444 guias. Elas tiveram mais de 28,3 milhões de plays no app, o que pagaria R$ 332 mil aos perfis.
O prejuízo não é só com a arrecadação perdida. O material é semente de grandes negócios.
Cada composição costuma ser vendida por cerca de R$ 15 mil, e a obra pode, caso alcance o 1º lugar nacional, render até R$ 1 milhão em direitos autorais.
As 444 faixas têm R$ 6,6 milhões em potencial valor de venda. Outros milhões em direitos podem estar sendo perdidos.
As vendas das guias ficam mais difíceis com a aparição pirata nas plataformas, pois as músicas deixam de ser inéditas. Grandes artistas exigem exclusividade.
Compositores experientes estão desesperados tentando derrubar as músicas de perfis "fakes", mas têm dificuldades de resposta de seus representantes e do Spotify.
Procurada pelo UOL, a empresa apenas informou que "detentores de direitos podem denunciar conteúdo infrator ao Spotify por meio de nosso formulário".
Questionada sobre o que faz para evitar a entrada do "conteúdo infrator", a empresa respondeu: "O Spotify depende de nossos provedores de conteúdo para verificar os direitos autorais por trás do conteúdo que eles nos entregam".
A música que virou 'Miragem'
O perfil Junior Kobal publicou no Spotify, em dezembro de 2022, uma faixa chamada "Você Anda". A canção romântica já teve mais de 790 mil plays. Não existe informação sobre o artista na internet.
A capa do álbum de Junior, com o título "Miragem", mostra um cérebro com uma coroa cercado por um triângulo colorido.
A imagem foi feita por inteligência artificial, segundo o site Was It AI?. As duas músicas de Kobal foram registradas por uma agregadora chamada Playtreks, com sede em Dubai.
O UOL tentou entrar em contato por telefone (com DDI da Bélgica) e email, mas não obteve retorno.
"Você Anda" tem 1 minuto e 13 segundos. Refrão e versos não se repetem. A qualidade do áudio não é profissional. Não há bateria gravada, apenas percussão. A faixa tem características de uma guia.
Versões "demo" de música sertaneja precisam ser bem acabadas para cativar clientes famosos. As obras têm de se destacar em meio às centenas de faixas oferecidas.
Os autores reais da faixa são Valéria Costa, Wallas Dias, Daniel Decc e Higor Netto. E o título dela não é "Você Anda", mas "Banalizando Intimidades". É Netto quem canta na guia.
O quarteto já assinou sucessos de Henrique e Juliano, Maiara e Maraisa e Jorge e Mateus.
Eles escrevem a música, gravam a guia e a disparam via WhatsApp para potenciais interessados, que podem demorar meses para fechar o negócio. É a praxe no meio.
"Banalizando intimidades" foi publicada no Spotify antes da venda. Valéria encontrou a faixa por acaso no fim de 2023, em uma playlist de sertanejo.
"A gente está num mato sem cachorro. A gente faz música e manda para empresários e artistas. Em algum lugar desse percurso alguém está agindo de má-fé"
Valéria Costa, compositora de sertanejo
As canções também aparecem no YouTube e em outros apps, mas com números de audiência bem menores do que no Spotify.
Capas repetidas
Os perfis fakes usam fotos de bancos de imagens ou ilustrações de IA. Quase todos têm apenas duas músicas publicadas.
Para Valéria e outros compositores, a pulverização pode ser uma forma de evitar a perda da contagem de reproduções caso o perfil seja derrubado, além de dificultar o rastreamento.
Dezenas de capas se repetem entre os artistas, às vezes com pequenas variações.
Na rede de 209 perfis falsos, 52 imagens são reproduzidas de duas a quatro vezes.
Lamento sertanejo
O UOL falou com 17 compositores que tiveram guias publicadas em perfis falsos.
Está todo mundo inseguro, com cuidado para enviar músicas. Ao mesmo tempo, precisa enviar para vender. Já acontecia de regravarem músicas de sucesso sem autorização. Mas isso de roubar guia é inédito. O nível de pilantragem foi elevado. Ricardo Vismark, autor de "Bebaça", de Maiara e Maraisa, e "Zé da Recaída", de Gusttavo Lima
Os compositores dizem que a cada dia encontram novos fakes.
"A gente se conhece e sabe quais são as músicas, as vozes. Por isso vamos mandando os links quando achamos esses roubos. Mas não tem muito o que fazer", diz Kauê Segundeiro, autor de "Fuzuê", trilha da novela homônima, na voz de Michel Teló.
A suspeita dos autores é que existam pessoas infiltradas nos canais de compra e venda de música sertaneja.
"A gente faz oito, dez músicas numa semana. E paga 150 reais para os estúdios para gravar as guias com um som legal. Como dividimos por quatro ou cinco, eu gasto quase mil reais de guia por mês, para agora ver elas serem roubadas", lamenta Lucas Papada, autor de "Batom de Cereja", de Israel e Rodolffo.
O registro mais antigo do esquema é de 2021. A rede fake continuou a crescer, e a maioria deles foi criada no segundo semestre de 2023.
Foi nessa época que a indignação estourou em grupos de compositores (reais) de Goiânia.
"A gente não tem como rastrear esses 'fio duma mãe'", diz Lucas Papada.
Ele e parceiros compuseram em 2023 "Dia Decisivo", mirando os clientes Israel e Rodolffo. "Era romântica e bonita." A guia apareceu no Spotify antes de o negócio ser fechado.
"Agora não sei o que vai ser. Os cantores veem que a música já está gravada e perdem confiança. Não olham a música com o mesmo olho"
Lucas Papada, compositor
As faixas roubadas têm milhões de plays no Spotify, mesmo relacionadas a artistas desconhecidos.
Compositores suspeitam que os perfis falsos usem formas artificiais de aumentar o número de reproduções, com uso de robôs.
Questionado pelo UOL sobre essa suspeita, o Spotify disse: "Quando identificamos manipulação de stream, tomamos medidas que podem incluir a remoção de números de streaming e a retenção de royalties. Isso nos permite proteger pagamentos de royalties para artistas honestos e diligentes".
Difícil de derrubar
Alguns compositores buscaram ajuda de suas editoras (empresas que registram as composições e cuidam da gestão de direitos).
Elas tentam derrubar perfis fakes, mas não conseguem resposta do Spotify e de outras plataformas.
A lei brasileira prevê até 4 anos de prisão a quem viola direitos autorais com a reprodução de uma obra que visa o lucro.
Nenhum dos compositores entrevistados pelo UOL procurou, até agora, a polícia ou a Justiça. Apenas as editoras e plataformas fizeram isso.
Algumas guias clonadas são mais antigas, e uma parte teve o destino dos sonhos dos compositores, que é ser comprada e gravada por um grande artista.
É o caso de "Eu te Subestimei", gravada por Zé Felipe em 2017, que tem Ricardo Vismark como um dos compositores.
Ricardo procurou Bruna Campos, especialista em direitos autorais, que começou a tentar derrubar os perfis.
O problema, para ela, já começa na omissão das plataformas quanto à checagem dos direitos autorais antes da publicação das músicas.
Não tem controle. Qualquer um pode subir músicas nas plataformas. E a maioria dos fraudadores sobe por agregadoras estrangeiras. Não conseguimos nem ter resposta para pedir a retirada. Entidades autorais brasileiras precisam discutir isso. Bruna Campos, especialista em direitos autorais
Ela conseguiu tirar do ar o perfil falso que publicou a guia de "Eu te Subestimei", de Ricardo Vismark, após compravar ao Spotify que a música já havia sido gravada por Zé Felipe.
Mas no caso de guias inéditas, que nunca foram vendidas, o caso fica mais difícil.
O advogado Daniel Campello explica que o direito autoral no Brasil é declaratório: "Você declara que é o autor e lança uma música, até que alguém te conteste e diga ser o dono".
O Spotify e outras plataformas seguem a lei brasileira ao permitir que qualquer pessoa suba uma música se dizendo autor.
"Este modelo funcionava no caso de gravações de álbuns, em volume menor e mais controláveis, mas não no streaming", diz Campello.
Só no Spotify são adicionadas 60 mil faixas por dia — quase uma por segundo.
A empresa de streaming tem o dever de tirar do ar caso alguém se oponha e ateste ser o dono daquela obra.
O problema no caso das guias é que a maioria delas ainda não foi registrada pelos autores em editoras — a prática do mercado é fazer este registro só após a obra ser vendida.
Fica difícil explicar que a música é uma composição inédita a partir de conversas de WhatsApp.
O UOL tentou contato com as 14 empresas listadas como distribuidoras das guias em nome de artistas falsos e só conseguiu com uma delas, a WMD, com sede no Brasil.
A reportagem enviou à WMD uma lista com 5 perfis falsos.
A empresa então tirou os cinco deles do ar, admitindo que estavam registrados por pessoas com nomes diferentes dos cantores.
A WMD informou que uma das pessoas tinha subido sete perfis de cantores com nomes falsos.
A reportagem perguntou a identidade dos donos dos perfis, mas a distribuidora disse que não poderia informar, com base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Onze perfis saíram do ar, mas ao menos outros 197 sertanejos fakes permanecem ativos.
O Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) e a Ubem (União Brasileira de Editoras de Música) disseram ao UOL que cobram dos streamings melhores ferramentas de identificação e derrubada de conteúdos irregulares.
Não há, no entanto, ações direcionadas a guias sertanejas.
Deixe seu comentário