BBB 24: Palavras racistas ditas por negros refletem o poder do racismo

O uso de palavras racistas por pessoas negras é muito mais comum do que se pensa. Na última terça (9), Leidy Elin, participante do BBB 24, chamou a atenção do participante Lucas Luigi por tê-la chamado de "macaca". Ambos são pessoas pretas.

Após Leidy explicar o porquê chamá-la assim era errado, Lucas explicou que falou no "automático", mas que também tem o costume de usar este termo em sua comunidade.

Para quem viu o contexto linguístico e extralinguístico da cena, dá para perceber a ausência de dolo na expressão de Lucas, já que a conversa girava em torno da beleza da participante Leidy Elin.

Porém, a palavra "macaca", embora possa ser utilizada entre pessoas negras, é uma palavra racista. O uso entre pessoas negras só reflete alguns dos poderes do racismo, que é o de refletir e refratar.

As palavras racistas surgiram do contexto de submissão dos povos negros aos regimes de colonialidade e servidão. Muitas dessas palavras sequer faziam sentido antes da vida moderna escravagista e dos mais de três séculos de trabalho escravo e o imenso tráfico negreiro no Atlântico.

A palavra "macaca" é um fantasma racista para as pessoas negras

Nenhuma pessoa negra, por mais racista que seja o contexto e a persuasão do ambiente nocivo que é a vida pública e social para uma pessoa de melanina escura, se acha um "macaco".

Os racistas recuperaram essa palavra de uma passagem icônica e irresponsável dos criacionistas que, buscando se antepor à teoria da evolução das espécies, passaram a dizer equivocadamente que essas ideias apontavam que o ser humano veio do macaco.

Darwin nunca disse que a humanidade veio do macaco, mas de um ancestral comum que poderia ter sido base tanto dos primatas quanto dos seres humanos.

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É lógico que, ao sequestrar esse termo da teoria, criacionistas e darwinistas sociais buscavam reduzir pessoas negras à animalização, à incapacidade de racionalidade e à falta de intelectualidade.

Não é raro que mulheres negras sejam tratadas até hoje como animais nas salas de parto dos hospitais ou pessoas negras sejam infantilizadas nos lugares públicos, quando, por exemplo, falam depois de nós nos explicando, nos traduzindo, nos versando diante da língua do colonizador, que também dominamos bem.

O BBB é uma vitrine social gigante para todas essas discussões

O uso desse termo por Lucas Luigi demonstra com clareza como o racismo age através de palavras. O termo "macaco" tanto reflete o grau de absurdo que é uma pessoa negra continuar a se ver ou ser vista como um animal, quanto refrata o seu principal significado social em comunidade.

Isto é, as pessoas naturalizam tanto a violência, que vão introduzindo palavras violentas contra elas mesmas em seu cotidiano.

Isso é refratário à medida que desvia o conteúdo racial direto da opressão e o introduz como realidade naturalizada e até satirizada entre a comunidade para fins de, supostamente, superar a dor ou viver além dela.

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Exemplos disso é a Marcha das Vadias (SlutWalk) ou o uso de expressões, antes utilizadas por homofóbicos, como vocativo entre gays ("viado", "bicha" etc.). Nos Estados Unidos, onde a palavra negro (pronuncia-se Ni'grou) é altamente pejorativa, o rap e setores de comunidades negras introduziram chamamentos intracomunitários como nigger ou nigga.

O mesmo não aconteceu aqui com "macaco", em que pese Lucas diga da naturalidade com que usa o termo. O racismo permanece como um cancro na memória ancestral das pessoas negras.

Durante muito tempo, e ainda atualmente, esse termo tem servido para afetar psicossocialmente pessoas negras nos mais diversos setores sociais. É como se o negro fosse um extraterrestre ocupando o espaço público.

Essa animalização abre um trauma coletivo especialmente relatado por pessoas de pele escura ou traços mais negroides.

Ou seja, o termo "macaco" reflete o racismo e o racismo reflete seus efeitos no termo, mas também pode ser refratado a partir dele. Conheço muitas pessoas negras que, ao reproduzirem o racismo, se autorizam a fazê-lo por serem negras, supondo que os efeitos do racismo sejam refratados, suavizados.

O fato do racismo também ser refratário, que guarda relação com o comportamento de Lucas Luigi, não invalida o combate a esses termos. Pelo contrário. Ser refratário significa que isso impede o combate sistêmico a formas de discriminação.

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Portanto, Leidy Elin marcou um golaço, nos apontou a necessidade de combater esses termos entre nós e ainda foi acolhedora com Lucas.

*Gabriel Nascimento é um linguista e escritor brasileiro, tendo publicado livros como "Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo". É professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

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