Topo

Por que é importante escalar atores negros para personagens diversos?

Yara Charry interpreta Joy na novela "Todas as Flores" - Globo/Estevam Avellar
Yara Charry interpreta Joy na novela "Todas as Flores" Imagem: Globo/Estevam Avellar

De Splash, no Rio

23/12/2022 04h00

Novelas e séries exibidas em 2022 trouxeram atores negros em tramas centrais e diversas. Isso é diferente do que vemos nas últimas décadas: poucos atores negros nas tramas e, geralmente, em histórias secundárias ligadas à pobreza, violência e racismo.

Ainda não há igualdade entre o número de atores negros e brancos nas histórias, mas a movimentação pode indicar mudança e mais representatividade nas produções audiovisuais do país, que tem 56% da população negra, segundo o IBGE.

A atriz Yara Charry, de 25 anos, defende que não basta colocar pessoas pretas em novelas para lutar contra o racismo. A intérprete de Joy em "Todas as Flores" diz que é preciso observar a importância do personagem e o que ele representa para a história daquela trama.

Na novela do Globoplay, Joy é uma menina negra que vem de uma família rica e mista — pai branco (Cássio Gabus Mendes) e mãe preta (Naruna Costa). É uma personagem complexa e com história própria na narrativa: ela circula em um dos principais ambientes da novela, a Rhodes, e vive os dilemas de uma pessoa soropositiva.

"(O debate) Não é eu ser uma mulher negra interpretando a Joy, mas sim o que representa na trama. Nesse momento da trama, ela está trabalhando em um lugar importante e não chegou nesse espaço do nada, ela estudou para estar ali. É uma personagem que tem suas camadas e faz um papel importante na história... Qualquer papel, independente do nível social, pode ser feito por uma atriz negra, branca, indígena. Pessoas pretas podem fazer qualquer tipo de personagem".

Personagens diversos contribuem para naturalizar a presença de pessoas negras em diferentes espaços da sociedade, acredita a atriz, que nasceu na França e vive no Brasil há seis anos.

A coisa mais importante, para mim, é representar um papel e uma menina poder ver e falar: 'um dia, eu posso estar ali também' ou 'amei essa personagem, ela está usando o mesmo cabelo que uso para ir à escola'

Luis Miranda e Vilma Melo como Eraldo e Olímpia em "Encantado's" - Globo/Sergio Zalis - Globo/Sergio Zalis
Luis Miranda e Vilma Melo como Eraldo e Olímpia em "Encantado's"
Imagem: Globo/Sergio Zalis

Outro exemplo positivo é a série "Encantado's". Protagonizada por Vilma Melo e Luís Miranda, tem 90% do elenco negro. Narra a rotina de uma família que possui um supermercado no subúrbio carioca. À noite, os funcionários afastam as gôndolas e o local se transforma na quadra da fictícia escola de samba Joia do Encantado. Mostra as complexidades de ser negro, mas sem reduzi-las apenas ao racismo estrutural, ainda realidade no Brasil.

"A gente não quer hipersexualizar o negro, nem mostrá-lo com arma na mão, mas não tem como não falar em racismo, mesmo numa comédia", afirmou Renata Andrade, que criou o programa ao lado de Thaís Pontes, ao jornal Folha de S. Paulo.

"Cara e Coragem", "Travessia" e "Todas as Flores" trazem atores negros como protagonistas atualmente. Na próxima novela das 7, "Vai na Fé", o ator Samuel de Assis vai dar vida ao advogado Ben, protagonista bem-sucedido da trama que estreia em janeiro.

"A gente precisa ver pessoas pretas nesse lugar. Pessoas pretas que não são bandidas, que não têm milhões de problemas familiares, que não estão se ferrando na vida. Ele é um cara muito bem-sucedido, com uma família bem-sucedida, com um casamento feliz. Acho importante as pessoas perceberem isso, a importância de um personagem como ele na TV aberta", diz.

Mas vale destacar que outras tramas seguem com pequena ou zero representatividade negra. "Mar do Sertão" e a recente "Pantanal", na Globo, "Moliana Poça", no SBT, e "Reis", na Record, são exemplos dessa realidade que se perpetua por décadas.

Samuel de Assis será Ben em "Vai na Fé" - Globo/João Miguel Júnior - Globo/João Miguel Júnior
Samuel de Assis será Ben em "Vai na Fé"
Imagem: Globo/João Miguel Júnior

Mais personagens negros complexos nas narrativas é uma demanda da sociedade. Se a Globo busca atores negros para compor os núcleos centrais de algumas novelas hoje, era criticada por falta de representatividade ou escalar atores negros apenas em personagens com pouca relevância nas tramas há poucos anos.

Essas críticas refletem o que os números apontam. Pesquisa ligada à Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) indicou que apenas 10% dos personagens centrais eram negros nas novelas da Globo entre 1994 e 2014.

O pesquisador Luiz Augusto Campos* enxerga como "desafios narrativos" as representações de grupos minoritários e dilemas relacionados a eles, como o racismo, sexismo e homofobia, no audiovisual.

Ele diz que, durante um certo momento, considerava-se como pauta fundamental do antirracismo denunciar o racismo brasileiro e a situação de subalternidade da população negra.

"O desafio narrativo a ser enfrentado era representar os problemas da população negra. Depois, essa associação entre negritude e subalternidade se tornou um problema, um desafio a ser superado. Isso tem a ver com elementos contextuais, como a composição de uma classe média negra via cotas, por exemplo. Daí a demanda pela desassociação entre negritude e pobreza, que elas não reforcem isso".

Hoje, ele conta que vivemos um momento mais complexo, porque as novelas e séries precisam "enfrentar as questões do racismo, essa associação tradicional entre raça e classe, mas, ao mesmo tempo, essa ressignificação do negro de elite, que também gera problemas".

Para ele, algumas produções recentes têm tratado das complexidades de ser negro, ou uma mulher negra, ou ser negro e da comunidade LGBTQIA+.

Esses desafios são mutantes. Não há um jeito certo de fazer essas representações. Elas dependem do contexto e do debate antirracista, feminista da sociedade.

* Luiz Augusto é coordenador do GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), do IESP (Instituto de Estudos Sexuais, Sociais e Políticos), pertencente a UERJ.