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Luis Miranda sobre falta de protagonismo negro: 'Só davam ao Lázaro Ramos'

Luis Miranda dá vida ao escritor Lima Barreto no filme "Lima Barreto, Ao Terceiro Dia" - Felipe O"neill / Divulgação
Luis Miranda dá vida ao escritor Lima Barreto no filme "Lima Barreto, Ao Terceiro Dia" Imagem: Felipe O'neill / Divulgação

De Splash, no Rio

29/09/2022 04h00

Aos 52 anos, Luis Miranda vive os primeiros protagonistas da carreira no audiovisual. Ele dá vida ao personagem principal de "Lima Barreto, Ao Terceiro Dia", filme que chega ao cinema hoje e conta a história do escritor negro que morreu aos 41 anos em 1922 e foi esquecido por muitos anos pela literatura brasileira.

Além disso, o ator baiano se prepara para lançar a série "Encantados", que deve estrear no Globoplay neste ano e ser exibida na TV Globo no próximo ano, e outros filmes em processo de pós-produção.

Em bate-papo com Splash, ele comemora as conquistas, mas pondera que ela é fruto da luta antirracista. Há alguns anos, ele conta que poucos atores negros conseguiam destaque no audiovisual.

"Sabe o que acontece para nós, negros? A gente é negado o tempo inteiro. Negado da função, do trabalho, das conquistas... A gente tem o Lázaro, então, era tudo dado ao Lázaro [Ramos]. A gente tinha o Milton [Gonçalves], era tudo dado ao Milton. Só podia existir um. Esse bastão não era passado. Hoje em dia, com as lutas de Milton, Lázaro, as minhas e outros, a gente começa a ver despontar atores em mais lugares, cenários e momentos. É importante que aconteça isso", diz.

Assim como Lima Barreto, ele se considera um revolucionário por tratar publicamente de assuntos ligados ao fato de ser negro, gay, nordestino e do candomblé. Em um Brasil polarizado, ele se diz esperançoso da vitória de Luiz Inácio Lula da Silvia no primeiro turno das eleições 2022.

"Sempre discuti a necessidade de uma cultura formada com artistas que tenham um pensamento crítico, social e revolucionário. Estou em um espaço bélico na sociedade, onde a gente é atacado o tempo inteiro pela nossa religião, cor, orientação e origem nordestina. A gente não tem outra chance a não ser lutar e brigar pelos nossos direitos", afirma.

"Minha ideia é construir um universo de linguagem e de discussão com a sociedade sobre esse protagonismo negro, entendeu? Um protagonismo visto sob outras óticas. É importante. Estou fazendo o filme que se chama 'Derrapada", interpretando um pai de família em outro patamar. Ele é um advogado bem-sucedido, tem uma filha que fica grávida de um menino branco e pobre. Discute-se o preconceito social. É o momento de discutir essas camadas de preconceito que a gente vive nessa sociedade horrorosa", continua.

Luis destaca ainda que é necessário levar o debate em torno do protagonismo negro para fora da arte, sem haver embranquecimento de figuras que se destacam, como ocorreu com ex-craque da seleção Pelé.

"A gente precisa lembrar que o Pelé, o rei do futebol, era aceito por todos quase como se fosse um branco, não se entendia o Pelé como negro. Acho até que ele podia ter sido mais revolucionário na afirmação da sua negritude. A gente vê tantos atletas que ainda tem uma dificuldade de se assumir como negros. Tem ocorrido bastante agressão e racismo nos campos, mas eles nunca entenderam que essa é uma luta para sua raça e classe. Importante que a gente também comece a ver como um dever, de todo mundo que ascende, levar e brigar pelas lutas e por leis", pensa.

Luis Miranda acredita que Lima Barreto foi um revolucionário - Felipe O'neill / Divulgação - Felipe O'neill / Divulgação
Luis Miranda acredita que Lima Barreto foi um revolucionário
Imagem: Felipe O'neill / Divulgação

"Lima Barreto, Aos Três Dias"

Levar Lima Barreto ao cinema faz parte da construção desse protagonismo negro nas telonas. O escritor e jornalista foi "esquecido" da história literária, sendo resgatado apenas nos últimos anos. O filme "Lima Barreto, Aos Três Dias" aborda os três dias da última internação hospitalar do escritor Lima Barreto, no manicômio D. Pedro II, em 1919, no Rio de Janeiro, após uma forte crise de alucinação.

Foi uma delícia, mas também foi difícil fazê-lo porque a gente sabe pouco sobre o Lima Barreto e os autores negros brasileiros. O Lima Barreto era revolucionário, escrevia sobre as situações atuais do país.

O roteiro traz Lima Barreto em duas versões: aos 42 anos, interpretado por Luis, e mais jovem, aos 30, na pele do ator Sidney Santiago Kuanza, fruto da sua memória e alucinações constantes. No longa, Lima relembra diversas vezes o período que era jovem e escrevia o romance "O Triste Fim de Policarpo Quaresma".

"Foi um mergulho grande e a preparação foi intensa. O filme tem um diálogo bem específico, é misturado com textos, fragmentos dramáticos e poesias do Lima Barreto. Exige um trabalho de apuração bastante cuidadosa. Para mim, foi um grande desafio e um grande orgulho", diz.

No ano de centenário da morte do escritor, Luis destaca a importância de resgatar o pensamento democrático presente em suas obras.

"O filme vem em um momento delicado do país, o qual a gente reafirma lutas que são ancestrais e democráticas. Aqui no Brasil, temos a eleição de gente tão voltada ao pensamento do fascismo, nazismo e totalitarismo... Eu, como negro e brasileiro, entendo que esse é o momento do país abrir os olhos para entender a luta contra os preconceitos como uma questão necessária para o Brasil inteiro. A gente tem que erradicar esses pensamentos mais nocivos, armamentistas e violentos. Buscar uma conciliação nacional para acabar com essas ideias que tomam conta de uma parcela da população", afirma.

A gente sabe que a maioria da população prima pela democracia, pelo estado democrático de direito, por um país justo e a gente vai brigar e vai lutar sempre por isso.

"Lima Barreto, Ao Terceiro Dia" é uma obra de ficção inspirada na peça homônima de Luís Alberto de Abreu e dirigida por Luiz Antonio Pilar. Ele conta com distribuição da Pipa Pictures e coprodução da Globo Filmes, Canal Brasil e Telecine.

Relação com o sucesso

Nascido em Santo Antônio de Jesus, no interior da Bahia, Luis Miranda ficou conhecido nacionalmente por realizar papéis em seriados de comédia da Globo. Mas ele não quer ser visto dentro desse rótulo apenas. O público vai poder acompanhá-lo em histórias que não são para fazer rir.

"A gente é muito mal tratado pelo sucesso. Às vezes, o sucesso de um projeto pode estigmatizar ou colocar você dentro de um nicho que é difícil de se libertar, ainda mais quando você não tem esse desejo... Mas, graças a Deus, eu tenho buscado sempre virar páginas e refletir sobre o que eu posso fazer. Me interessam histórias. Quero ter uma vida mais pluralizada, uma carreira mais descentralizada e fora dos rótulos que sou colocado. Fico feliz de poder ter a oportunidade de ser visto nesse lugar do drama", afirma.

Além do drama na história de Lima Barreto, ele estreia em breve o filme "Derrapada", do diretor Pedro Amorim, "Grande Sertão Veredas", de Guel Arraes, e "O Clube das Mulheres de Negócios", de Anna Muylaert.