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Pedro Antunes

O forró perde a realeza e o sorriso com a morte de Genival Lacerda

Genival Lacerda na capa do disco de 1982 - Reprodução
Genival Lacerda na capa do disco de 1982 Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

07/01/2021 10h38

Sem tempo?

  • Genival Lacerda morreu aos 89 anos
  • O artista era conhecido como rei do forró de duplo sentido
  • Sucesso nas décadas de 1970 e 1980, Genival fazia um forró extremamente popular, jocoso
  • É claro, o olhar pelo prisma da sociedade contemporânea mostra que algumas letras e capas do artista são problemáticas
  • Mas o caminho aberto por Genival Lacerda ajudou o forró a se popularizar e, hoje, disputa com o sertanejo o topo das paradas
  • Hoje, o sorriso desaparece e a sanfona descansa, silenciosa, em luto. Genival Lacerda se foi.

Genival Lacerda, o rei do forró, como tantos dizem.

Cunhado de Jackson do Pandeiro.

Compositor de "Severina Xique Xique" (do refrão "ele tá de olho é na butique dela", uma parceria com João Gonçalves), hit que estourou no Brasil todo em 1975 e vendeu mais de 800 mil cópias.

Mais uma perda por conta de complicações da covid-19 (até quando?), aos 89 anos.

E o forró chora a despedida de um dos grandes, um artista gigantesco nascido em Campina Grande (Paraíba) que em 1964 chegou no Rio de Janeiro justamente no dia em que foi instaurado o golpe militar no Brasil.

Genival tinha um apelo popular enorme. Criava canções que se conectavam ao dia a dia, jocosas, que espumavam duplos sentidos. Era chamado de rei da munganga e não era por acaso. Era divertido, de papo, de entrevista, de composição, de ver no palco, em ação.

Vale a dica: assista ao documentário "O Rei da Munganga", de Carolina Paiva, lançado em 2008 e que segue uma turnê de Genival Lecarda e traz depoimentos de gente como Elba Ramalho e Dominguinhos.

Artista de outra época

Era um artista de outra geração, também. Hoje, graças aos avanços sociais recentes, alguns versos dele, como no sucesso "Radinho de Pilha" ("Tem mulher que só aprende quando o coro desce / Pra gente ficar empate, eu vou lhe dar uma sova"), são problemáticos e não têm espaço na estrutura social que queremos ter.

Assim como, em 2021, são altamente questionáveis os gostos das capas de alguns discos clássicos, caso "Me Dê o Gravador", "Troque as Pilhas, Mas Não Mate o Veio" e "Brinquedo de Menina", nas quais Genival aparece completamente vestido e mulheres de biquíni são objetificadas.

Importante retratista das transformações sociais do Brasil dos anos 70 e 80

Lacerda vendeu discos a rodo (e gravou mais de 70 álbuns ao longo da vida), quando discos ainda vendiam no Brasil.

É importante reforçar a relevância de Genival Lacerda (ao lado de gigantes como Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Jacinto Silva, Sandro Becker) para a música nacional e para a popularização do forró como gênero e expressão artística de raízes extremamente brasileiras.

Se hoje o gênero (transformado pelo passar das décadas e pelo novo mercado da música pop, é claro) disputa com o sertanejo o topo das paradas, com nomes como Barões da Pisadinha, e também figura no Grammy Latino com releituras mais "raiz" de Mariana Aydar, isso se deve ao caminho aberto por Genival quando decidiu seguir os conselhos de Jackson do Pandeiro e partiu para o Rio de Janeiro.

O papel de Genival Lacerda é constantemente "esquecido" por historiadores da música brasileira, que costumeiramente pintam a arte do País das décadas de 1970 e 1980 com as cores de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa, além do gigantesco Roberto Carlos. Havia muito mais (os artistas do brega que o digam, não é?)

Foram nos anos 70 que surgiram casas de forró, graças ao êxodo e os fluxos migratórios de trabalhadores do nordeste para o sudeste. João Gonçalves, Zenilton, Messias Holanda e o grande Genival Lacerda faziam sucesso com esse forró de duplo sentido.

Artista antenado

Ligado no que acontece no mundo, Genival gravou com Ivete Sangalo a música "Chevette da Menina". A música entrou em um álbum que celebrava 60 anos de carreira do artista e, depois, foi regravada por Ivete no álbum "Arraiá da Veveta" (de 2020). Também lançou "Me Dê Seu Wi-Fi", em 2016.

Mais do que o duplo sentido

Genival não era só duplo sentido, contudo. Seus personagens traziam um relato honesto do cotidiano de uma época: o trabalho pesado, a diversão entre bebidas, cigarros e dança. Retratava também a saudade e a distância de milhares de quilômetros de casa.

"Quem Dera" (do álbum "Troque as Pilhas, Só Não Mate o Véio", 1984), por exemplo, é um dos forrós mais deliciosos de se dançar sozinho, sentindo saudade de quem partiu.

Hoje, o sorriso desaparece e a sanfona descansa, silenciosa, em luto. Genival Lacerda se foi.