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Pedro Antunes

Nosso gosto musical é detonado por robô sincerão - e isso é libertador

Colunista do UOL

29/12/2020 04h00

Sem tempo?

  • Em dezembro, as retrospectivas do Spotify ganharam as redes. Todos orgulhosos dos artistas que mais ouviram, certo?
  • Um site, agora, promete ter criado uma inteligência artificial sincerona que detona o seu gosto musical
  • Nada melhor do que entender que nosso gosto não é perfeito

Só para deixar claro, o título desta coluna não é uma indireta para o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), a quem devo ser obrigado a chamar de amigo virtual depois de ter um texto desta humilde coluna compartilhada no feed de Instagram dele.

Covas, pelo visto, não gostou do artigo que citava uma ironia gigantesca e inevitável. Afinal, como alguém que ouviu tanto as músicas do Rage Against the Machine em 2020, uma banda com claros, evidentes e assombrosamente explícitos discursos de ideais de esquerda, é capaz de sancionar o aumento do próprio salário em 46% e retirar a gratuidade no transporte público para pessoas com mais de 60 anos na cidade?

Do gosto musical dele, de Covas, vou tentar não falar (não prometo, mas vamos ver). Posso, contudo, falar do meu gosto e do seu, caro leitor/contribuinte.

Somos apegados ao nosso gosto musical, não é?

Lá por meados de dezembro, as redes sociais foram invadidas pelo prints de uma retrospectiva individual de artistas e músicas mais ouvidas ao longo do ano, criada por um certo serviço de streaming.

O pessoal, orgulhosíssimo, mostrava como era descolado, cool e ouvia artistas bombados, populares ou aqueles que "só eu conheço". Gastamos incontáveis minutos analisando o que cada um ouviu ao longo do ano.

Até escrevi sobre esse fenômeno em um texto de título: "Quem é você na retrospectiva 2020 do Spotify?"

Inteligência artificial sincerona

Pois outro site, dono de ótimas sacadas e infográficos para quem é fluente em inglês, o The Pudding, criou uma inteligência artificial sincerona capaz de analisar o seu uso no Spotify e evidenciar como o nosso gosto musical é péssimo.

Claro, tudo tem uma tonelada de sarcasmo e ironia, mas o título já deixa claro que eles irão destruir a gente: "How Bad Is Your Spotify?" Algo como: quão ruim é o seu Spotify?

Você pode fazer o teste no site deles, em inglês, caso queira. Eles dizem que usam a base de dados de críticos conceituados e geralmente "chatos", como Anthony Fantano (dono do canal de YouTube The Needle Drop), e os sites Stereogum, Pitchfork, Pigeons & Planes, entre outros.

A inteligência artificial fuça o nosso comportamento na plataforma de streaming desde o primeiro acesso e faz comentários sobre o que você ouviu ao longo destes anos. É divertido até.

A sensação é de conversar com um "nerd da música" que realmente vive em um mundinho próprio de excelência musical e que vai desdenhar do seu prazer ao ouvir artistas populares ou até criticar o fato de você curtir artistas alternativos, mas escutar apenas as faixas mais clichês deles.

Pode ser uma brincadeira inocente essa (do The Pudding), mas ajuda a abrir a cabeça, não acham?

Ler sobre suas "péssimas" preferências musicais é como tomar uma sacudida para entender que gosto não se discute - a não ser que você seja um político aliado a João Dória (governador de São Paulo) e ouça uma banda que pede por distribuição de renda e luta agressivamente contra as discrepâncias sociais e financeiras (perdão, tentei evitar, mas não consegui).

Não importa o quão bom você considerar ser o seu gosto musical, sempre terá alguém para dizer que ele é ruim.

É um tapa na cara, mesmo, mas necessário.

Aceitar isso é cada vez mais raro, parece-me. Culpa das redes sociais e das bolhas nas quais habitamos. Quem falar mal da banda que amamos é digno de ódio e mensagens raivosas no Instagram e Twitter.

Parece uma grande bobagem, mas veja só: nos últimos dois meses, o pessoal tem perdido minutos preciosos das respectivas vidas para me mandar mensagens de desamor porque escrevi um artigo sobre as problemáticas do som do Guns N' Roses.

Nos acostumamos e conviver (mesmo que virtualmente) com pessoas que pensam como nós e têm um gosto musical semelhante também, de modo que qualquer voz contrária possa soar como uma afronta pessoal ou uma ofensa pesadíssima.

A verdade é que ninguém está a salvo de ter o gosto musical questionado. O The Pudding não poupa ninguém. Nem eu, nem os fãs de Guns N' Roses, nem o Bruno Covas.

Faça esse exercício. A partir do momento em quer você entender que seu gosto pessoal e musical não é perfeito e único, a vida fica mais leve. E sua playlist favorita vai ter de Barões da Pisadinha a Fiona Apple, de Fundo de Quintal a Waxahatchee, de Beatles a até Guns N' Roses.

É libertador, de fato.