Topo

Aluguel na Argentina vive 'efeito Airbnb', cobrado em dólares: 'Loucura!'

Muitos proprietários de imóveis estão optando pelos contratos chamados turísticos, de prazos menores, cobrados em dólares ou reajustados pela moeda norte-americana - NurPhoto via Getty Images
Muitos proprietários de imóveis estão optando pelos contratos chamados turísticos, de prazos menores, cobrados em dólares ou reajustados pela moeda norte-americana
Imagem: NurPhoto via Getty Images

Amanda Cotrim

Colaboração para Nossa, de Buenos Aires, Argentina

31/07/2023 04h00

Ao abrir os portais mais populares de aluguéis da Argentina, é possível ficar um pouco confuso com os anúncios em moedas diferentes. Isso porque pelo menos 50% das publicações de aluguel destinados à residência, em Buenos Aires, estão exigindo que o pagamento seja em dólar. Esses dados são de um estudo recente produzido pelo Mercado Livre e pela Universidad San Andrés, de Buenos Aires.

Os valores mais econômicos de um monoambiente (como são chamados os estúdios) encontrados pela reportagem, em sites como Zonapro, grupos de Facebook e Mercado Livre, são, em média, a partir de US$ 500 mensais (cerca de R 2.365 na cotação atual).

Um dos fatores — mas não o único — para entender o crescimento da dolarização dos aluguéis na Argentina, e em especial em Buenos Aires, é a baixa oferta de imóveis e a demanda do turismo internacional — em um "efeito Airbnb", com estadias temporárias e cotadas na moeda americana. Aliado a isso, a inflação crônica que vive o país e a crescente desvalorização do peso argentino ajudam a acentuar a crise habitacional no país.

Ainda de acordo com a mesma pesquisa produzida pelo Mercado Livre, a oferta de imóveis para alugar na Argentina sofreu uma queda de 30% no último ano.

Nenhum proprietário quer alugar seu imóvel; a maioria prefere vendê-lo. Os poucos que alugam, preferem alugar para os estrangeiros, com contratos turísticos — temporários, que pagarão em dólares"

A frase acima é do dono de um apartamento no bairro de Recoleta, um dos metros quadrados mais caros de Buenos Aires, e que preferiu não se identificar. O apartamento dele é alugado, atualmente, pela plataforma Airbnb e por meio de contratos temporários de três meses.

Exemplo de um 'monoambiente" que pode ser encontrado na plataforma Airbnb em Buenos Aires - Reprodução Airbnb - Reprodução Airbnb
Exemplo de um loft que pode ser encontrado na plataforma Airbnb em Buenos Aires. A diária deste custa R$ 624
Imagem: Reprodução Airbnb

O interesse de um proprietário é radicalmente oposto ao de um inquilino. Enquanto para um trabalhador é conveniente um aluguel permanente, tal como rege a lei de aluguéis na Argentina, com preço congelado por um ano, para o dono de um imóvel alugar um apartamento sem reajustes ao longo do ano é perder dinheiro ao final dos 12 meses.

A dolarização dos contratos dos aluguéis na Argentina, no entanto, cresce à margem do que regula a lei de aluguel imobiliário no país, que prevê o pagamento em moeda local, que no caso seria em pesos argentinos.

Contrato permanente e contrato temporário

Atualmente, na Argentina existem dois padrões de contratos de aluguel destinados a moradia: o permanente, de no mínimo três anos, com reajuste anual do valor do aluguel, conforme o Índice de Preços ao Consumidor, e o contrato temporário de três meses, para fins turísticos, com pagamento de comissões imobiliárias pelos inquilinos.

A pesquisadora argentina Florencia Labiano, que investiga o acesso à moradia e os aluguéis em Buenos Aires - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A pesquisadora argentina Florencia Labiano, que investiga os aluguéis em Buenos Aires
Imagem: Arquivo pessoal

Para a pesquisadora Florencia Labiano, que investiga o acesso à moradia e os aluguéis em Buenos Aires, pelo Conselho Nacional de Pesquisadores Científicos e Técnicos da Argentina (Conicet), mesmo que os imóveis disponíveis para aluguel de moradia não sejam ocupados por turistas estrangeiros, o deslocamento do contrato de residência permanente para o contrato turístico gera um aumento de preços.

Isso acontece mesmo sem a exigência do pagamento em dólar pois, segundo a pesquisadora, os aluguéis turísticos acabam sendo usados por pessoas que não são turistas, mas que não cumprem com as exigências para alugar um imóvel de modo permanente.

Apesar de o aluguel turístico ter um preço mais alto, as exigências são menores, favorecendo quem não pode apresentar holerite, fiador e outros requisitos, sejam argentinos ou não, como é o caso do brasileiro Nicolas Salvatorio*, que trabalha remotamente na área de publicidade e está em Buenos Aires há três meses em busca de qualidade de vida e intercâmbio cultural.

Nicolas veio estudar roteiro de cinema e alugou um apartamento de um quarto e sala a US$ 400, até novembro. O contrato de quatro meses, no entanto, é de boca. O brasileiro explicou que o preço foi cotado em dólar, mas que o proprietário aceitou o pagamento em peso argentino para não ter "problemas" com o banco.

Apartamentos para vender anunciados em dólares em imobiliária na Argentina - Universal Images Group via Getty Images - Universal Images Group via Getty Images
Apartamentos para vender anunciados em dólares em imobiliária na Argentina
Imagem: Universal Images Group via Getty Images

Recorde de turistas

A Argentina é um dos destinos mais procurados por turistas estrangeiros na América do Sul, principalmente brasileiros. De acordo com o último relatório da Direção Nacional de Mercados e Estatísticas do Ministério do Turismo da Argentina, mais de 620 mil viagens de turistas foram feitas à Argentina em abril de 2023, um aumento de 105,2%, considerado um recorde histórico para o mês.

Dessas viagens, pelo menos 30% foram feitas por turistas brasileiros. O ministro de Turismo da Argentina, Matías Lammens, chegou a declarar que a alta do turismo internacional bateu metas estipuladas pelo governo no final de 2022, retomando o superávit em seu saldo turístico.

Buenos Aires vive uma recuperação dos turistas, que lotam os novos mercados gastronômicos da capital - Lucila Runnacles - Lucila Runnacles
Buenos Aires vive uma recuperação dos turistas, que lotam os novos mercados gastronômicos da capital
Imagem: Lucila Runnacles

Turismo como cortina de fumaça

Na avaliação da pesquisadora Florencia Labiano, o "boom" turístico ajuda, mas não é um fator que explica sozinho a dolarização dos aluguéis, já que, segundo ela, a maioria das pessoas que está renovando seus contratos por fora da lei de aluguel são argentinos e estrangeiros residentes.

As pessoas precisam de um lugar para viver e se submetem a contratos temporários, com reajustes trimestrais, porque é o que há" Florencia Labiano

Atualmente, estima-se que pelo menos 70 mil imóveis estão alugados através de contratos temporários.

Apartamento no badalado bairro de Palermo Soho disponível para aluguel na plataforma Airbnb - Reprodução Airbnb - Reprodução Airbnb
Apartamento no badalado bairro de Palermo Soho disponível para aluguel na plataforma Airbnb
Imagem: Reprodução Airbnb

Um estudo divulgado recentemente pelo Centro de Estudos Metropolitanos (CEM) revelou um crescimento da plataforma Airbnb no contexto de crise habitacional na Argentina.

Foi avaliada a relação de oferta de aluguéis temporários e permanentes, e se considerou que mais de 15 mil propriedades na cidade de Buenos Aires "que poderiam abastecer a oferta de aluguéis permanentes foi deslocada ao mercado de aluguéis temporários/turísticos".

Em 2019 a estimativa era que um pouco mais de 9 mil propriedades eram destinadas a aluguéis turísticos. Quatro anos depois, com o fim da pandemia, esse número cresceu 62%, segundo o CEM.

Dolarização não se limita a Buenos Aires

A complexa crise habitacional do país, acentuada pelos contratos de aluguéis turísticos, não se reflete só em Buenos Aires, mas também em outras cidades turísticas do país, como Bariloche, na Patagônia argentina.

"Um colega de trabalho precisou deixar o imóvel porque o proprietário estava exigindo o pagamento em dólares. Eu te garanto: como a dele há milhões de histórias assim", conta Daniela Soares*, que trabalha em uma empresa de turismo na Patagônia

Com a dolarização dos aluguéis e a inflação, os preços estão nas alturas. Então você paga em peso, mas com cotação em dólar" Daniela Soares*

O poder de compra do peso argentino tem sido afetado drasticamente pela crise - NurPhoto via Getty Images - NurPhoto via Getty Images
O poder de compra do peso argentino tem sido afetado drasticamente pela crise
Imagem: NurPhoto via Getty Images

De acordo com dados mais recentes do governo de Bariloche, em 2022 houve um aumento de 65% de turistas estrangeiros em relação aos três anos anteriores, batendo um recorde de um milhão e meio de pessoas que visitaram a cidade.

Representantes de imobiliárias em Bariloche, entrevistados pela imprensa local, relacionaram o déficit de oferta de moradia na cidade a duas razões: a lei de aluguel de 2020, que congela os preços dos aluguéis por um ano em um país que tem uma inflação crônica, e o turismo, que atrai as ofertas de aluguéis temporários, com preços em dólar.

Quem pode pagar um aluguel em dólar?

Só em Buenos Aires, segundo a plataforma de aluguel Zonaprop, os preços tiveram um aumento de 70% no primeiro semestre de 2023. Diante desses números, o presidente da Associação de Inquilinos da Argentina, Gervasio Muñoz, chegou a afirmar que "na Argentina, o aluguel é regulado pela lei da selva".

"Quem pode pagar um aluguel em dólar? Isso é uma loucura!", questionou o argentino Santiago Costa, de 28 anos, que trabalha como locutor em Buenos Aires e tem um salário de, em média, R$ 2.600.

O locutor argentino Santiago Costa busca há três meses apartamento na capital - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O locutor argentino Santiago Costa busca há três meses apartamento na capital
Imagem: Arquivo pessoal

Santiago está há pelo menos três meses buscando apartamento para alugar na Capital Federal. Apesar de possuir todas as exigências para alugar um imóvel residencial, como holerite, fiador e depósito, ele não consegue alugar por causa da imposição do pagamento em dólar.

Não respeitam a lei de aluguel. Além da exigência da moeda estrangeira, não querem cumprir o contrato de três anos, mas de menos tempo, com reajuste semestral"

O que diz a lei de aluguel

De acordo com a lei de aluguéis da Argentina, vigente desde 2020, a lei está acima de qualquer contrato. O prazo mínimo do contrato de locação destinado a moradia é de três anos, podendo renovar até 20 anos. Contratos com menos de 3 anos são proibidos.

Se os contratos para fins turísticos, chamados de temporários, forem de períodos superiores a três meses, eles são considerados um aluguel normal e não mais temporário, sendo, portanto, ilegal "funcionar" com as regras deste.

Ainda assim, na prática, a realidade não é essa, já que muitos contratos estão sendo realizados com prazos que não estão de acordo com a lei" Florencia Labiano

Vista das casas da Villa 31, com habitações populares na região do bairro do Retiro - Getty Images - Getty Images
Vista das casas da Villa 31, com habitações populares na região do bairro do Retiro
Imagem: Getty Images

Atualmente, a lei de aluguel na Argentina está sendo rediscutida e, no dia 23 de agosto, o Congresso analisará uma proposta, encabeçada pelo setor imobiliário, para legalizar o que, atualmente, ocorres na prática.

A proposta, no entanto, tem críticas por parte de movimentos sociais de moradia, que argumentam que a mudança na lei de aluguel vai inviabilizar o acesso à moradia por pessoas de classes sociais menos favorecidas, com renda que não acompanha a inflação.

*os nomes originais foram modificados, a pedido das fontes.