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Restaurante icônico de Lisboa quase foi 'engolido' por igreja evangélica

Bife à império e o vinho próprio do Café Império, em Lisboa - Reprodução/Facebook
Bife à império e o vinho próprio do Café Império, em Lisboa Imagem: Reprodução/Facebook

Victor Caselli

Colaboração para Nossa

19/03/2023 04h00

Quem passa despercebido pelo número 205 da Avenida Almirante Reis, em Lisboa, não faz ideia da história que esse local guarda.

O edifício onde se encontra o Café Império foi inicialmente projetado pelo arquiteto Cassiano Branco, em 1947 e o restaurante só abriu suas portas em 1955 — três anos antes, na parte superior da mesma construção, já havia sido inaugurado o Cinema Império, como revela a fachada modernista.

O lugar rapidamente ganhou o coração dos lisboetas e se tornou um ponto de encontro para o público de todas as idades, sobretudo para familiares que passaram a frequentar o restaurante, cujo proprietário era a família América dos Santos.

Grandes artistas portugueses dos anos 50 e 60 como António Calvário, Artur Garcia e Madalena Iglésias se apresentaram no recinto, que também teve bastante importância na Revolução de 25 de abril. Era lá onde ocorriam muitas tertúlias, as populares reuniões de amigos e conhecidos, mesmo que naquele momento o país estivesse vivendo uma ditadura, que teve fim em 1974.

Área do que seria o Cinema e Café Império, em Lisboa - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Área do que seria o Cinema e Café Império, em Lisboa
Imagem: Reprodução/Facebook

Chega a igreja

No início dos anos 90, o Cinema Império encerrou suas atividades. O local foi comprado pela IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) em 1992 para a instalação de um templo. O que era um dos principais centros de cultura, shows e espetáculos da capital portuguesa passou a ser "apenas" um restaurante.

Cinema Império, em Lisboa, em foto de 1952 - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Cinema Império, em Lisboa, em foto de 1952
Imagem: Reprodução/Facebook

O imponente edifício na esquina da Avenida Almirante Reis com a Alameda Dom Afonso Henriques, antigamente sede do cinema, teve seus famosos letreiros retirados e substituídos pelos da igreja, já que a instituição religiosa passou a ter total controle sobre o espaço. Contudo, a entrada do Café Império permaneceu na mesma avenida.

Já em 2006, a família América dos Santos decidiu passar o estabelecimento para frente. Paulo Ribeiro, dono da empresa Oraboni & Ribeiro, Lda e que já atuava no ramo de restaurantes, se interessou e abriu negociações para adquirir o local. Entretanto, como proprietária do imóvel, a IURD exerceu o direito de preferência para comprar o Café Império, visando ampliar seu espaço de culto, localizado em frente à estação de metrô Alameda.

O restaurante chegou a fechar as portas por três meses, entre maio e agosto daquele mesmo ano, pois as obras pretendidas pela IURD foram embargadas pela Câmara Municipal de Lisboa. Isso gerou o descontentamento não só dos funcionários, como também da população local.

A voz do povo é a voz de Deus

O Café Império ressurgiu graças à pressão popular dos lisboetas, que eram contra seu fechamento. É o que conta Carina Ribeiro, filha de Paulo e atual gerente do restaurante:

"Por ser um lugar histórico, as pessoas queriam manter o Café Império. Muitas famílias e amigos se reuniam aqui, vinham comer, jogar bilhar e se divertir. A IURD entrou em contato conosco e chegamos a um acordo para poder tocar o restaurante."

Salão do Café Império, em Lisboa - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Salão do Café Império, em Lisboa
Imagem: Reprodução/Facebook

Carina, nascida no Rio de Janeiro, filha de mãe mineira e pai português, diz que manteve os mesmos funcionários que lá estavam antes, como Maxim, quem começou a trabalhar aos 18 anos de idade e leva mais de 50 anos na casa. "Hoje em dia, temos alguns funcionários antigos. Claro que nem todos seguem conosco, pois uns se aposentaram, outros já faleceram."

Carina também já morou no Chile, além de Brasil e Portugal, e se considera uma "cidadã do mundo". Por isso, contrata empregados das mais diversas nacionalidades: "Aqui temos gente de Angola, do Nepal, do Uzbequistão, da Índia, da Venezuela.", completa.

Apesar de ter quase sete décadas de existência, o restaurante preserva sua estrutura e planta originais, já que não pode sofrer reformas por ser considerado Patrimônio Arquitetônico pela Direção Geral do Patrimônio Cultural.

No salão do restaurante, por exemplo, há um mural de 48 metros quadrados do pintor Luís Dourdil, feito em 1955 e restaurado com o apoio da Direção Municipal da Cultura.

Mural do pintor  Luís Dourdil do Café Império, em Lisboa - Victor Caselli - Victor Caselli
Mural do pintor Luís Dourdil do Café Império, em Lisboa
Imagem: Victor Caselli

Entretanto, Carina afirma que algumas remodelações internas foram feitas quando sua família comprou o restaurante:

Modernizamos em 2006 a decoração. Colocamos telão de cinema para quando há jogos de futebol, fizemos uma sala para crianças, palco para shows. Queremos resgatar um pouco do que foi o Café Império nos anos 50".

Ela ainda completa dando exemplos dos tipos de eventos que a casa apresenta: "Já fizemos noites temáticas do Brasil, da França, de Cabo Verde, também temos concertos com orquestras. Isso aqui respira arte e história."

Menu da casa

Bife à império do Café Império, em Lisboa - Victor Caselli - Victor Caselli
Bife à império do Café Império, em Lisboa
Imagem: Victor Caselli

O principal prato do Café Império é o "bife à império". Tradicional desde sua abertura, em 1955, ele segue sendo o carro-chefe do restaurante. A princípio ele pode parecer simples: carne de novilho, ovo frito por cima e batata frita de acompanhamento. Entretanto, o molho especial é o que dá o sabor e a fama ao prato. Carina não revela o segredo do molho, apenas indica um ingrediente que faz parte da receita: manteiga.

Ela ainda afirma que todos os cozinheiros devem aprender a fazer o molho "à império", já que o prato faz sucesso há mais de 60 anos: "É uma receita que vai sendo passada de geração para geração". Apesar de o "bife à império" ser o prato mais famoso, Carina declara que o polvo e o bacalhau também são pedidos que saem muito. Além disso, o cardápio oferece diversas opções vegetarianas.

De sobremesa, o "doce da casa" surpreende (basicamente todo restaurante português tem seu próprio "doce da casa)". Deste, Carina revela os ingredientes: nata, leite condensado e bolacha.

O Café Império também possui sua própria marca de alimentos, que conta com a produção de vinhos (branco, tinto e rosé), açúcar, vinagre e azeite. O vinho do Porto, por exemplo, é comprado diretamente de um produtor do norte de Portugal; já o azeite, é fabricado em Trás-os-Montes, também ao norte do país.

Clientela local e apaixonada

Café do Café Império, em Lisboa - Victor Caselli - Victor Caselli
Café do Café Império, em Lisboa
Imagem: Victor Caselli

Segundo Carina, a maior parte dos clientes do Café Império são portugueses e reconhece que o maior marketing do restaurante é o "boca a boca" e afirma que precisam melhorar as redes sociais para crescerem ainda mais. Mesmo assim, o Café Império continua recebendo ilustres clientes:

Já vieram ministros, o ex-presidente de Portugal, o presidente do Sporting, Chico Buarque e Pilar del Río, ex-mulher do José Saramago."

Para o futuro, Carina e seus pais esperam expandir a marca do restaurante, que possui dois andares e capacidade para 400 pessoas: "Temos mais outras duas unidades em Lisboa. Esperamos poder abrir no Porto também e eventualmente no Brasil".

Como diz a frase no saquinho de açúcar do Café Império, a ideia é levar um pouco da história "de Portugal para o mundo".