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Chef Alex Atala lança livro com mais de 400 páginas sobre a mandioca

O livro de Alex Atala tem a participação de pesquisadores, cronistas, cozinheiros, indigenistas e fotógrafos  - André Giorgi/UOL
O livro de Alex Atala tem a participação de pesquisadores, cronistas, cozinheiros, indigenistas e fotógrafos
Imagem: André Giorgi/UOL

Bruno Calixto

Colaboração para Nossa

14/12/2021 12h26

Consumida literalmente do Oiapoque ao Chuí, a mandioca (ou aipim ou macaxeira) é o foco de um verdadeiro tratado sobre a raiz autêntica do Brasil que o chef e pesquisador Alex Atala apresenta em "Manihot Utilissima Pohl: Mandioca" (editora Alaúde), que será lançado nesta quarta-feira (15).

Com mais de 400 páginas, o livro aborda aspectos culturais e se torna um registro único sobre como a mandioca resiste e permanece como sustento e alimento da população, ao mesmo tempo em que representa nossa ancestralidade.

Capa de "Manihot Utilissima Pohl: Mandioca", um amplo estudo sobre a raiz brasileira - Ricardo Dangelo - Ricardo Dangelo
Capa de "Manihot Utilissima Pohl: Mandioca", um amplo estudo sobre a raiz brasileira
Imagem: Ricardo Dangelo

O projeto levou dois anos para ser realizado e valoriza a versatilidade da raiz nacional. Mas não é só. O projeto ainda reúne pesquisadores, cronistas, cozinheiros, indigenistas e fotógrafos para apresentar esse universo tão rico quanto diverso.

"Aleluia, aleluia! Carne no prato e farinha na cuia!"

A publicação traça o panorama histórico do ingrediente, desde os costumes indígenas antes da chegada dos portugueses, destacando as formas de plantio, cultivo, processamento e preparo da mandioca; até a travessia dos séculos de colonização e a resistência à industrialização dos tempos recentes.

Livro mandioca do Alex Atala - Jerônimo Villas-Boas - Jerônimo Villas-Boas
O livro retrata em textos, imagens e receitas as várias facetas sobre a mandioca
Imagem: Jerônimo Villas-Boas

Mas atenção: não é um um livro de receitas, embora elas estejam em boa parte do capítulo final, com dicas valiosas de alguns dos mais renomados cozinheiros do país, entre eles Helena Rizzo, Dani Martins, Mara Salles, Claude Troisgros e Rodrigo Oliveira.

Das 157 imagens, há ensaios específicos de fotógrafos como Pedro Martinelli, Iêda Marques, Renato Soares e Elza Lima. Ganha destaque entre as imagens "a mulher provedora". Ou seja, mulheres e mães que costumam ter de três a cinco roças para o cultivo da mandioca. Juntas, elas trabalham e revezam suas terras. Os bebês são carregados na tipoia e eles descansam numa pequena rede armada sob a sombra, para que elas possam trabalhar. Confira um trecho a seguir:

Dizem as mulheres de hoje que as antigas eram mais sábias: trabalhavam na roça antes do sol quente. Hoje em dia já não têm tanta pressa, dizem, fazendo-se a primeira refeição tranquilamente e com longas conversas antes de sair para a roça. Quando chove nesse período da primeira refeição, atrasam-se com calma, dedicando-se a outros afazeres, como a produção artesanal."

Imagem das "mulheres provedoras" que se revezam na lida com as roças de mandioca - Miguel Chikaoka - Miguel Chikaoka
Imagem das "mulheres provedoras" que se revezam na lida com as roças de mandioca
Imagem: Miguel Chikaoka

A origem antes mesmo do mito da origem do Brasil

Na América, os milhos, as batatas, as favas e os amendoins são tão nativos quanto a amazônica mandioca. Farinhas finas, grossas, brancas, amarelas, gomas, polvilhos, cauins e tucupis, povoando casas, roças, restaurantes, dos simples aos mais refinados. Curiosamente, esta raiz veio sendo deixada em segundo plano na caracterização de nossa tradição alimentar.

"A referência à farinha de mandioca pode ser exceção, mas a colonização logo se ocupou de trazer o trigo para 'dignificar' a mesa dos brasileiros. Não se trata, aqui, de questionar a primazia nutritiva do milho e do feijão, fundamentais para o alastramento e a estruturação do novo espaço social da colônia", escreveu Atala, um incansável transformador de mandioca em iguarias exclusivas, servidas em suas casas em São Paulo, entre elas o D.O.M., terceiro melhor restaurante segundo o Latin America's 50 Best.

Impossível, no entanto, ignorar como de norte a sul a farinha de mandioca perdurou, por excelência, como alimento de encher a barriga de quem trabalhou para nos tornar nação, sobretudo daqueles que não tinham acesso à carne e ao feijão"

Terra Indí­gena Xingu, aldeia Afukuri Kuikuro, no distrito de Gaúcha do Norte -- mandioca - Renato Soares  - Renato Soares
Trabalho com a mandioca na aldeia Afukuri Kuikuro, no distrito de Gaúcha do Norte
Imagem: Renato Soares

A cultura canavieira, como traz um outro trecho da obra, incrementou a cultura da mandioca. No Nordeste, as roças disputavam espaço com a cana, pois delas saía o sustento da casa-grande e da senzala. Na Amazônia, onde os portugueses se embrenharam atrás das drogas do sertão, a mandioca reinava absoluta.

A mandioca, principalmente a farinha, também se imiscuiu na forte cultura do doce que se desenvolveu por aqui. O melaço, o mel de engenho, misturado com farinha de mandioca, era comida de escravo.

Uma das imagens mais emblemáticas da narrativa, a reprodução de uma pintura de Rugendas revela que o processamento artesanal da mandioca para a produção de farinha não sofreu grandes mudanças desde o século 19. Adoçava a vida na casa-grande e na senzala.

Na aldeia Bona, a massa da mandioca é espremida e compactada pelo tipiti para a preparação de alimento - Renato Soares - Renato Soares
Na aldeia Bona, a massa da mandioca é espremida e compactada pelo tipiti para a preparação de alimento
Imagem: Renato Soares

Diz Câmara Cascudo em sua "História da alimentação no Brasil": "Há quase cinco séculos, a mandioca continua mantendo o prestígio no crédito popular. Reina absoluta nos trópicos, nas terras da Amazônia e no litoral brasileiro, dividindo seus louros com o milho no sertão do Brasil e nos altiplanos andinos."

Sim, ela está por todo o país, do churrasco gaúcho aos caxiris amazônicos, da tapioca que acompanha o açaí ou absorve os caldos dos guisados ao espessante na indústria de alimentos. Como diria a presidente, "saudações à mandioca!"

Abertura da Casa da Pimenta Takairo, na Terra Indígena Alto Rio Negro (AM)  - Carol Quintanilha - Carol Quintanilha
Imagem da Casa da Pimenta Takairo, na Terra Indígena Alto Rio Negro (AM), presente no livro de Atala
Imagem: Carol Quintanilha

Terroir Amazônia

A Amazônia é reconhecida como um dos principais centros de domesticação de plantas cultivadas do planeta, tão importante como as regiões andina e mesoamericana (sul do México e norte da América Central). A espécie amazônica de maior importância em âmbito mundial hoje é a mandioca (Manihot esculenta), que ajuda a alimentar pelo menos 800 milhões de pessoas nos países tropicais das Américas, da África e da Ásia.

Terra fofa para as raízes se espalharem; solo arenoso para drenar a água e sol. Estão dadas as condições para o arbusto da mandioca crescer", sublinha Alex Atala.

Alimento versátil

Além das formas tradicionais de consumo, in natura ou como farinha, Atala vai além, buscando novas formas de utilizar a matéria-prima.

"No D.O.M., a equipe liderada por mim, Geovane Carneiro e Rubens Salfer encara todos os dias o desafio de pesquisar outros modos de explorá-la para além do seu formato in natura", diz.

Alguns povos da Amazônia dão as pistas de que é possível agregar a pratos já consagrados pela gastronomia os elementos que a matéria-prima contida na mandioca tem a oferecer. Os mingaus, o tucupi e as bebidas fermentadas demonstram o seu virtuosismo"

Livro Alex Atala sobre mandioca - Sérgio Coimbra - Sérgio Coimbra
No livro, vários chefs apresentam pratos que têm a mandioca como estrela da receita
Imagem: Sérgio Coimbra
Como os dadinhos de tapioca do chef Rodrigo Oliveira - Sérgio Coimbra - Sérgio Coimbra
Como os dadinhos de tapioca do chef Rodrigo Oliveira
Imagem: Sérgio Coimbra

Não existe apenas uma mandioca, são muitas. É o que "Manihot Utilissima Pohl" tenta provar ao longo de um texto saboroso. Que a mandioca surgiu na Amazônia brasileira ainda antes de Cristo e dali se espalhou para outros países das Américas do Sul e Central todo mundo sabe.

Mas uma parte dos brasileiros não conhece uma lenda popular sobre seu surgimento, que diz que uma índia chamada Maní morreu ainda bebê e foi enterrada em sua oca (Maní-oca). De sua sepultura teria brotado a planta que ganhou seu nome. História para, quem sabe, uma outra edição sobre a verdadeira e autêntica comida do Brasil.