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Por que estátuas egípcias têm nariz quebrado? Não é só pelo desgaste

Além do nariz, você já reparou que muitas obras egípcias não tem o braço esquerdo? - Reprodução
Além do nariz, você já reparou que muitas obras egípcias não tem o braço esquerdo?
Imagem: Reprodução

Gustavo Frank

De Nossa

30/11/2020 04h00

Em uma visita ao museu com obras egípcias expostas, você provavelmente vai encontrar algumas delas com o nariz quebrado. Na verdade, a grande maioria.

A primeira explicação, mesmo que involuntária, para o porquê delas estarem danificadas é o tempo desde que foram criadas — mesmo que produzida a partir de materiais resistentes. O segundo pensamento pode vir por ser uma parte em alto-relevo no rosto, que, teoricamente, facilmente poderia ser quebrada, tanto em consequência da exposição às temperaturas climáticas ou às locomoções feitas ao longo do tempo.

Todas essas explicações são relevantes e, ainda mais importantes, não descartáveis. No entanto, o curador Edward Bleiberg, do Museu do Brooklyn, nos Estados Unidos, dá uma nova alternativa para o nariz quebrado: as crenças místicas dos egípcios nas épocas em que essas estátuas foram esculpidas.

No livro "Poder impressionante: Iconoclastia no Egito Antigo", o estudioso percebeu esse padrão nas obras e resolveu procurar respostas — mesmo que confirmassem as já óbvias, o que não aconteceu.

Isso porque, além das estátuas, as esculturas feitas em relevos planos também apresentam os narizes danificados, em contraste ao resto intacto. Todas elas datadas do século 25 a.C. ao século 1 d.C..

"A consistência dos padrões onde o dano é encontrado na escultura sugere que é proposital", comenta ele na publicação. "Todos eles têm a ver com a economia de ofertas ao sobrenatural".

Stela de Setju, 2500?2350 a.C.  - Museu do Brooklyn - Museu do Brooklyn
Stela de Setju, 2500?2350 a.C.
Imagem: Museu do Brooklyn

Para contextualizar, é importante ressaltar como os egípcios atribuíam poderes importantes às imagens da forma humana. Eles acreditavam que a essência de uma divindade poderia habitar sua imagem ou, no caso de meros mortais, parte da alma daquele ser humano falecido poderia habitar sua estátua.

"Essas campanhas de vandalismo tinham como objetivo, portanto, desativar a força de uma imagem", explica o curador do museu.

Ou seja, se a imagem de alguém é destruída no plano terrestre, assim será feito no outro plano em que eles vivem após a morte. Mais especificamente: sem nariz, o espírito da estátua para de respirar, ou seja, morre em ambas as dimensões.

A parte danificada do corpo não é mais capaz de exercer a sua função".

Além do nariz, outra parte comumente vista quebrada nessas estátuas são os braços esquerdos, que eram usados para fazer as oferendas de alimento.

As tumbas e os templos, onde a maioria dessas obras, no geral, são encontradas antes de serem levadas aos museus, eram os repositórios da maioria das esculturas e relevos que tinham esse propósito de ritual.

"No final das contas, tudo tem a ver com a economia de ofertas ao sobrenatural", complementa Bleiberg.

Nessas tumbas e templos, as estátuas eram "alimentadas" no outro mundo com presentes de comida do "nosso mundo". Isso pode ser visto nas representações de deuses egípcios em templos, em que eles são desenhados recebendo oferendas de representações de reis ou de outras elites, mas apenas os capazes de encomendar uma estátua.

Místico, mas também político

A busca por respostas foi além da misticidade e mostrou que tais "vandalismos" também tinham o intuito político para as nações. Desfigurar estátuas ajudou governantes ambiciosos a reescrever a história a seu favor.

Metropolitan Museum of Art - Metropolitan Museum of Art - Metropolitan Museum of Art
Hatshepsut com o cocar khat, 1479?58 aC
Imagem: Metropolitan Museum of Art

Ao longo dos séculos, esse apagamento muitas vezes ocorreu em questões de gênero: os legados de duas poderosas rainhas egípcias, cuja autoridade e mística alimentam a imaginação cultural — Hatshepsut e Nefertiti — foram amplamente apagados da cultura visual.

"O reinado de Hatshepsut apresentou um problema para a legitimidade do sucessor de Tutmés III, e Tutmés resolveu esse problema eliminando virtualmente toda a memória imagética e inscrita de Hatshepsut", escreve Bleiberg.

Vandalismo não, trabalho minucioso

Fragmento do rosto de uma rainha desconhecida, 1353?1336 a.C. - Metropolitan Museum of Art - Metropolitan Museum of Art
Fragmento do rosto de uma rainha desconhecida, 1353?1336 a.C.
Imagem: Metropolitan Museum of Art

Embora a palavra "vandalismo" tenha sido usada ao longo dessa matéria e até mesmo no livro de Edward Bleiberg, o autor ressalta que os responsáveis por essas ações não eram vândalos, mas pessoas contratadas especificamente para esse trabalho de rompimento da vida mística e real.

"Eles não estavam eliminando obras de arte de maneira imprudente e aleatória", argumenta. "Na verdade, a precisão do alvo de seus cinzéis sugere que eles eram trabalhadores qualificados, treinados e contratados para esse fim exato".

Edward vai ainda além e diz que tratar essas estátuas, por exemplo, como "obra de arte" é incompatível com as suas finalidades quando foram criadas, quando eram tratadas como "equipamentos" políticos.

"Quando falamos sobre esses artefatos como obras de arte, nós os descontextualizamos", conclui: "As imagens no espaço público são um reflexo de quem tem o poder de contar a história do que aconteceu e do que deve ser lembrado".