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Rafael Leick

REPORTAGEM

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Minha mãe mochileira: viajamos para conhecer uma família recém-descoberta

Minha mãe mochileira viajando de trem pela Dinamarca - Rafael Leick
Minha mãe mochileira viajando de trem pela Dinamarca Imagem: Rafael Leick

Colunista do UOL

06/06/2023 04h00

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Essa talvez seja uma das colunas mais especiais e marcantes que escrevo em quase um ano aqui em Nossa. Entramos no Mês do Orgulho, minha sobrinha completa dois aninhos (essa é bem pessoal, eu sei) e venho contar uma experiência das mais incríveis que já vivi: acabei de voltar de um mochilão de mais de 20 dias pela Europa com a minha mãe — que celebrou seus 61 anos por lá — para conhecer pessoalmente uma parte da nossa família que descobrimos recentemente.

Há alguns anos, recebemos o contato de uma senhora pelas redes sociais que dizia ser nossa parente. Depois da natural desconfiança inicial, fomos investigar e realmente temos laços familiares relativamente próximos. Meu bisavô era irmão da avó dela. Ao longo dos últimos anos, nos conectamos com outros membros da família pelas redes e ficamos mais próximos.

Desde então, só crescia a vontade de viajar para a Dinamarca e conhecer estes parentes pessoalmente. Mudei os planos algumas vezes, primeiro por conta do dinheiro, porque é um destino bastante caro. Depois, veio a pandemia. Este ano decidi parar de adiar este sonho, mesmo com o câmbio tão desfavorável. E chamei minha mãe para essa aventura familiar.

Foram meses de planejamento e decidimos incluir outros destinos nos 22 dias de viagem: Amesterdã (Países Baixos), Talín (Estônia), Helsinque (Finlândia), Estocolmo (Suécia) e Hamburgo (Alemanha), além das conexões em Frankfurt (Alemanha), Londres (Reino Unido) e Madri (Espanha). Também passamos, claro, por Copenhague e outras cidades dinamarquesas para visitar toda a família, que está espalhada pelas ilhas que formam o pequeno país. E eles gentilmente nos convidaram para passar as noites em suas casas, para podermos trocar conversa e se conhecer melhor.

Mãe mochileira no aeroporto - Rafael Leick - Rafael Leick
Mãe mochileira no aeroporto
Imagem: Rafael Leick

Ficaríamos na casa de familiares, mas que ainda eram desconhecidos. Como seria isso? Nós daríamos bem? Teríamos algo em comum? A ansiedade era grande. Mas a experiência não poderia ter sido melhor.

Conexão de mãe e filho

Minha relação com minha mãe sempre foi boa e foram raros os momentos em que nos estranhamos ao longo da vida. Mas uma viagem como essa gera expectativa de como essa relação se comportaria em ambientes bem diferentes.

Para nossa sorte, foi tudo bastante suave. Mesmo o número gigantesco de escadas e caminhadas para os quais os joelhos e os pés da minha mãe não estavam preparados — viraram piada. Minha mãe estourou sua bolha de vivências e testou alguns de seus limites. Eu também me experimentei com um ritmo mais lento do que estou acostumado e foi ótimo perceber o quanto é legal apreciar as pequenas coisas que, correndo, não vemos. Achamos um meio-termo que funcionou.

Com minha mãe em Copenhague, na Dinamarca - Rafael Leick - Rafael Leick
Com minha mãe em Copenhague, na Dinamarca
Imagem: Rafael Leick

A gente teve momentos em que nos permitimos ser menos mochileiros, como a experiência no hotel instagramável em Amsterdã, um jantar nos restaurantes turísticos nos canais de Copenhague ou o conforto da casa dos nossos familiares. Queria que essa fosse uma experiência memorável para ela. Mas também propus desafios que ela não tinha experimentado. Para economizar, ficamos em hostel, compartilhando o quarto e o banheiro com até oito pessoas, viajamos de ônibus por cerca de oito horas entre um país e outro, abrimos mão de comer bem para almoçar um lanche de fast-food e, por vezes, optamos por caminhar ao invés do transporte público.

Chegando ao aeroporto de Amsterdam para começar a viagem - Foto Rafael Leick - Viaja Bi! - Rafael Leick - Rafael Leick
Chegando ao aeroporto de Amsterdã para começar a viagem
Imagem: Rafael Leick
Muitas escadas em uma das igrejas em Tallinn, na Estônia - Rafael Leick - Rafael Leick
Muitas escadas em uma das igrejas em Tallinn, na Estônia
Imagem: Rafael Leick

Mergulho no passado dinamarquês

Nossa experiência na Dinamarca foi bastante diversa. Além de uns dias em Copenhague, onde conheci o bar gay mais antigo do mundo, fomos para Elsinore, ao norte — onde é mais rápido cruzar os 15 minutos de balsa para a Suécia do que voltar para a capital; exploramos a cidade viking de Roskilde e a casa de Hans Christian Andersen — criador da Pequena Sereia — em Odense; visitamos a segunda maior cidade dinamarquesa, Aarhus; ficamos hospedados na casa da minha prima em uma fazenda afastada da cidade e na da prima da minha mãe, onde mergulhamos fundo no passado da família.

A família da minha prima nos recebeu muito bem na Dinamarca - Rafael Leick - Rafael Leick
A família da minha prima nos recebeu muito bem na Dinamarca
Imagem: Rafael Leick

Lá, vimos um álbum de fotos do começo dos anos 1900 (ou antes, não sabemos dizer), ouvimos histórias sobre nossos antepassados e descobrimos até que um deles foi um explorador dos mares. Martin Spangsberg era braço direito do capitão de uma expedição que descobriu o estreito que divide o Alasca da Rússia e hoje leva o nome deste capitão: Estreito de Bering!

A prima da minha mãe pesquisou a fundo a vida deste parente distante e encontrou diversos documentos nos arquivos russos. Por conta dessa história, foi convidada a escrever parte de um livro sobre ele — ganhei uma cópia em inglês, autografada — e incentivar que uma estátua em sua homenagem fosse erguida na cidade dinamarquesa de Esbjerg, no leste do país, em frente ao Museu da Pesca e da Marinha.

Com um álbum de família dos anos 1900 em mãos - Rafael Leick - Rafael Leick
Com um álbum de família dos anos 1900 em mãos
Imagem: Rafael Leick

Fizemos uma viagem de carro até essa cidade para ver a estátua, fazer um piquenique próximo ao lugar onde era a casa da família — hoje uma área industrial — e visitar a igreja onde muitos dos nossos antepassados foram enterrados.

É inexplicável ter vivido isso, sentido emoções esquisitas e novas e se perceber conectado a uma história tão presente e que era, até pouco tempo, desconhecida.

Laços de família

As barreiras linguísticas sempre podem proporcionar momentos memoráveis em viagem, seja pelo motivo que for. Eu falo bem o inglês, mas minha mãe não. Para ser sincero, ela sabe se virar, porque entende, mas tem receio de falar tudo errado. É a trava mais comum para quem está aprendendo inglês. O jeito é só se arriscar e ir aperfeiçoando.

Piquenique próximo ao local onde ficava a casa da família - Rafael Leick - Rafael Leick
Piquenique próximo ao local onde ficava a casa da família
Imagem: Rafael Leick

Mas, numa viagem como essa, isso dificultou um pouco a interação dela, com a família especialmente, já que eu tinha que traduzir conversas inteiras. A parte legal são as gafes que vamos lembrar para contar. Na casa dessa prima da minha mãe, fomos recebidos com muito carinho, assim como em todas as outras casas. Em dado momento, minha mãe quis dizer que ela fazia tudo com muito capricho. Na hora de traduzir "caprichosa", o Google Tradutor deu o outro significado, de pessoa mimada, cheia de caprichos. O oposto do que estávamos querendo dizer.

No dinamarquês, quem sambou fui eu. Para proporcionar uma experiência inesquecível para minha mãe, comprei um ingresso (caro) para assistir Ragnarok no Teatro Nacional, que era perto do hotel. Mesmo em dinamarquês os figurinos e cenários da mitologia nórdica iriam nos entreter e proporcionar uma noite inesquecível. E foi. Chegando lá, descobrimos que era um outro espaço do Teatro Nacional, uma hora ao norte, no meio da floresta. Parecia sensacional, mas não assisti para poder contar.

Meu primo nos levou para tomar um vinho em uma cidade entre Copenhague e Elsinore - Rafael Leick - Rafael Leick
Meu primo nos levou para tomar um vinho em uma cidade entre Copenhague e Elsinore
Imagem: Rafael Leick

Todos os familiares também me desafiaram com um trava-línguas dinamarquês: "Rødgrød med fløde". A tradução é simples: mingau vermelho com creme. Mas a pronúncia exige treino e dedicação. Boa sorte, se quiser tentar!

Foi divertido também perceber semelhanças físicas, como a rosácea que minha mãe compartilha com algumas mulheres da família e as entradas pronunciadas na cabeça que eu e meu primo compartilhamos desde muito jovens.

Um mochilão como esses é para não esquecer jamais!