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Rafael Leick

REPORTAGEM

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Turista é preso na Turquia por 'parecer gay' e fica 19 dias no cárcere

Miguel em foto postada durante sua passagem por Istambul - Instagram/Reprodução
Miguel em foto postada durante sua passagem por Istambul Imagem: Instagram/Reprodução

Colunista do UOL

18/07/2023 04h00Atualizada em 20/07/2023 17h09

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Na última semana, Miguel Álvaro Pereira, de 34 anos, sentiu alívio ao ser deportado para Portugal — apesar de morar em São Paulo, ele tem cidadania portuguesa. O sul-africano viveu quase 20 dias de terror na Turquia, onde foi preso no meio da rua por "parecer gay". No processo, foi deixado sem água e comida, em condições precárias e sofreu ameaças de violência, morte e estupro.

Viajante frequente, Miguel já morou seis anos em Londres, uma primeira temporada no Brasil por três anos e em Xangai por um ano, antes de fixar base novamente em São Paulo, já há quase um ano, onde trabalha como professor de matemática numa escola internacional.

Parada LGBTQIA+ ilegal

No último dia 25 de junho, domingo — três dias antes do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ — ativistas turcos enfrentaram, mais uma vez, a proibição do governo de Istambul, e estavam organizando uma Parada do Orgulho, como todo ano acontece.

Apesar de ser gay, Miguel não estava sabendo do evento, que ocorreria próximo ao apartamento que tinha alugado. Ele tinha marcado um almoço com um amigo em um bairro turístico chamado Balat e, ao descer do prédio, viu uma barricada gigante da polícia, que estava impedindo o fluxo de pedestres. Sem entender o que estava acontecendo, ele se aproximou dos policiais para perguntar como chegar ao local que precisava.

Manifestantes turcos fizeram vários atos durante junho em Istambul - Monique Jaques/Corbis via Getty Images - Monique Jaques/Corbis via Getty Images
Manifestantes turcos fizeram vários atos durante junho em Istambul
Imagem: Monique Jaques/Corbis via Getty Images

Depois de um deles perguntar para onde iria e Miguel responder, ele foi preso. Eram cerca de oito policiais o cercando, batendo, jogando contra a van e machucando seu ombro, que ficou sangrando. Ainda segundo ele, ele foi algemado com aquelas tiras de plástico. A situação aconteceu em um local próximo à praça central Taksim, onde normalmente ocorrem as celebrações do Orgulho.

Até esse momento, suas perguntas para entender o por que estava sendo preso não eram respondidas. Os policiais sistematicamente o ignoravam, fingindo não entender inglês. Somente após cinco horas na van, ele foi informado que estava acontecendo a Parada LGBTQIA+ no fim da rua e que ela era ilegal e, como ele parecia gay, acharam que ele participaria do protesto.

Sim, ele foi preso por "parecer gay"! E ele não foi o único. Junto com ele, um iraniano e um russo passaram por todo o processo, criando uma proximidade ao longo das semanas.

Eles deixaram 60 mil policiais em posição naquele dia para prender pessoas gays. O que eles faziam, basicamente, é que cada uma daquelas vans tinha que ficar cheia e eles precisavam prender, pelo menos, 300 pessoas. Eu, infelizmente, fui uma delas".

Se essa era a meta, a polícia cumpriu um terço dela, com cerca de 100 pessoas presas.

Violações de direitos humanos

Manifestante é preso em Istambul - SOPA Images/SOPA Images/LightRocket via Gett - SOPA Images/SOPA Images/LightRocket via Gett
Manifestante é preso em Istambul
Imagem: SOPA Images/SOPA Images/LightRocket via Gett

Depois de treze horas de espera, ele foi levado para quatro lugares diferentes. Primeiro, uma estação de polícia em Istambul para ter seu depoimento colhido. Já na segunda-feira, por volta de 8h da manhã e ainda sem dormir, Miguel foi levado para o departamento de polícia no centro da cidade e colocado na cadeia junto com criminosos, espalhados no chão.

Ali, pediram para assinar um papel que o deixariam ir. Neste momento, um dos novos "amigos" de Miguel, também preso, o alertou para não assinar pois o documento dizia algo como "assine este papel se você cometeu um crime". Foram mais algumas boas horas de espera, já completando 24h desde a prisão, sem descansar.

De repente, ele se viu em uma van, novamente algemado, na estrada por quase uma hora até chegar em outra cidade, Tuzla. De acordo com Miguel, ele foi levado para um local com cerca de 20.000 pessoas "enfiadas em quartos". O dele era para 6 pessoas com beliches, fezes nos lençóis e urina em todo canto. Ele também alegou não ter recebido comida ou água neste tempo todo.

Por volta da meia-noite de segunda para terça-feira, eles foram colocados em outra van e levados até Sanliurfa, um complexo prisional já próximo da fronteira com a Síria. Foram 17h de viagem, sem comida e água e sem permissão de ir ao banheiro. Só no fim da tarde de terça-feira, ele recebeu um copo pequeno de água.

Em Sanliurfa, Miguel foi colocado numa sala com cerca de 30 pessoas e, segundo ele, eram traficantes, pessoas viciadas em drogas e criminosos. Duas horas depois, e ainda sem dormir, ele e seus companheiros de prisão foram levados para uma cela.

Pendências de viagem e ameaças de morte e estupro

Miguel é sul-africano, tem cidade portuguesa e mora em São Paulo - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
Miguel é sul-africano, tem cidade portuguesa e mora em São Paulo
Imagem: Instagram/Reprodução

Obviamente, o acesso ao celular era proibido e, portanto, Miguel deixou várias pendências do lado de fora: o check-out do quarto que ele tinha alugado em Istambul; seu voo para Suíça, onde ele tinha compromissos de trabalho; e seu amigo aguardando para buscá-lo no aeroporto de Genebra. Somente após 9 dias preso, teve autorização para usar um telefone, mas somente por dois minutos por dia.

Neste período, numa cela ao lado, havia homens da Chechênia, Turcomenistão, Rússia e Turquia ameaçando Miguel e seus amigos, por serem gays, de feri-los, matá-los e...veja só, de estuprá-los. Isso só mostra como o ódio, muitas vezes, está encobrindo um desejo. Nem Freud explica!

Por este motivo, durante o tempo que passou lá, ele quase não dormiu, com medo do que os homofóbicos poderiam fazer. Por sorte, alguns sírios, também presos, estavam ajudando a protegê-los, já que os seguranças não faziam nada neste sentido.

"Foi a pior experiência da minha vida. Ainda não soa real que fui preso por estar andando na rua. Minha recomendação para qualquer pessoa gay, ou qualquer pessoa, na verdade, é que não vá à Turquia. É absolutamente terrível. Eles não têm respeito pelos direitos humanos. Literalmente, eles saem nas ruas e tentam pegar pessoas para colocar nas prisões", lamenta Miguel

Ajuda da ONU e próximos passos

Depois de 19 dias, na quinta-feira passada (13 de julho), Miguel foi deportado para Portugal e impedido de entrar na Turquia por 3 anos. Durante o período de sua detenção, duas entidades buscaram advogados para defendê-lo: a Alta Comissão para Refugiados das Nações Unidas (UNHCR) e a entidade beneficente que organiza a Istambul Pride e luta pelos direitos da comunidade.

"Nós tivemos uma ONG LGBTQIA+ que nos ajudou e pagou o nosso voo de volta, o meu para Portugal e do meu amigo para a Rússia. Um dos nossos amigos ainda está lá. Disseram que querem o manter como refugiado por 6 meses. Precisamos agir, isso não é OK."

Como próximos passos, Miguel gostaria de tentar envolver a Corte Europeia, mas disse que não tem dinheiro para mover um processo como este, com seu salário de professor.

Em seu Instagram, Miguel postou um vídeo contando a história completa (em inglês).

O outro lado

Esta coluna entrou em contato com a assessoria de imprensa do escritório do Ministério do Turismo da Turquia no Brasil solicitando posicionamento, mas não obteve retorno. O espaço continuará aberto e, caso haja posicionamento, o texto será atualizado.