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Rafael Leick

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

África de mochila: como foi acampar com amigo em país homofóbico sendo gay

Na Namíbia, é crime ser LGBTQIA+ - Rafael Leick
Na Namíbia, é crime ser LGBTQIA+ Imagem: Rafael Leick

Colunista do UOL

14/03/2023 04h00

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Há alguns anos, desembarquei na Namíbia para minha primeira e muito esperada visita ao continente africano, para uma viagem de baixo orçamento e com duração de mais de uma semana, por todo o país.

Assim que, em um surto por uma megapromoção, comprei minha passagem, me dei conta que eu nunca tinha pensado especificamente na Namíbia para viajar e não sabia absolutamente nada sobre o destino, nem que era um país essencialmente homofóbico, onde é crime ser LGBTQIA+.

Aí comecei a me preocupar porque, além de ser gay, eu já tinha o Viaja Bi!, um blog de viagens para viajantes LGBTQIA+. Ou seja, se na imigração alguém resolvesse dar um Google no meu nome, arco-íris iriam pular e eu estaria encrencado. E não só eu!

Um amigo tinha topado essa loucura de explorar a Namíbia comigo e, apesar de ser hétero, numa situação dessas ele poderia ser lido como meu namorado e sofrer com a homofobia tanto quanto eu. Meu receio começou a ficar cada vez mais intenso e, além das pesquisas para o roteiro de 9 dias, conduzi uma investigação paralela para descobrir o quanto estaríamos expostos.

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Nesta situação, meu amigo hétero poderia sofrer homofobia tanto quanto eu
Imagem: Rafael Leick

Acabei conhecendo virtualmente uma brasileira que trabalhava como guia na Namíbia e que namorava um namibiano. Perguntei como era essa questão por lá e a resposta me tranquilizou por um lado e me deixou triste por outro.

Ela confirmou que, oficialmente, a homossexualidade não é aceita. Mas existe uma regra social implícita que as pessoas fingem não existir: homens podem sair à noite, ficarem e transarem com outros caras, se explorarem sexualmente. Mas, no outro dia, têm que agir como se nada tivesse acontecido, mesmo se cruzasse com o boy por aí. Mais ou menos como os gays padrão da região do Centro-Jardins de São Paulo fazem quando encontram, na rua, um cara com quem transaram no dia anterior, sabe?

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Uma das paisagens desérticas da Namíbia
Imagem: Rafael Leick

E essa história me deixou curioso para conhecer mais a fundo como vivem os homens gays na Namíbia. Ao mesmo tempo, é muito triste de ver ao que eles têm que se submeter para sobreviver - e quanto as gays discretas e fora do meio de SP têm privilégio e o desperdiçam, agindo da mesma maneira.

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Pinturas rupestres
Imagem: Rafael Leick

E foi com "tudo isso" de informação que embarcamos para a Namíbia. Antes de chegar lá, numa conexão de algumas horas em Luanda, em Angola, conheci pessoalmente o Gustavo. Já contei aqui sobre a vez em que ele ficou preso em uma fronteira por ser gay. E as histórias que ele me contou ali no saguão do aeroporto, de revistarem seu celular, computador etc. me deixaram tenso. Ao mesmo tempo, depois do que ele passou, ele parecia bastante tranquilo para encarar a imigração namibiana.

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Pausa para refeição no nosso acampamento
Imagem: Rafael Leick

O que também me deu mais tranquilidade - e mais medo, ao mesmo — foi que o Gustavo iria encontrar, na Namíbia, um grupo de mais três amigos, que incluía seu namorado na época. Ao mesmo tempo que senti um acolhimento de estar entre os meus e não ser o único gay a passar por ali, um grupo de 5 gays (e um hétero que poderia ser lido como tal) não poderia chamar mais ainda atenção?

No fim das contas, a entrada no país foi super tranquila e meu amigo hétero fez praticamente um safári pelo Vale dos Homossexuais pelos primeiros dias. E correu tudo bem.

Namíbia - Rafael Leick - Rafael Leick
Imagem: Rafael Leick

Na primeira hospedagem, uma pousada simples em Windhoek, a capital da Namíbia, o quarto que eu e ele reservamos era com cama de casal. Para a gente, zero problemas, mas eu estava bastante tenso se seria um problema para quem trabalhava na pousada e se isso nos colocaria em risco. Dormi preocupado, mas não tivemos nenhum problema.

Para os demais dias, eu estava mais tranquilo. Alugamos um carro e iríamos buscar campings pelo caminho, sem nenhuma reserva prévia. É, eu sei, o que preocupa uns não é preocupação para outras pessoas. Eu iria acampar na África sem preparação ou reserva e tinha medo da pousada. Boas vindas ao mundo LGBTQIA+!

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Um dos nossos acampamentos
Imagem: Rafael Leick

Nos primeiros dias, seguimos nosso roteiro junto com os meninos que tínhamos acabado de conhecer, eles em um carro, a gente em outro. Além de uma noite em Windhoek, passamos pela incrível reserva natural Okonjima, para conhecer o trabalho da Fundação AfriCat, que cuida da preservação e conservação de grandes felinos na região e onde vimos leopardo e cheetas de pertinho, mas com a gente estando dentro das grades. Foi sensacional! E o belíssimo guia ainda foi uma atração à parte para o nosso grupo (com exceção do Rafa, meu amigo hétero).

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Imagem: Rafael Leick

De lá, seguimos para o principal ponto turístico da Namíbia, o Parque Nacional Etosha, onde a vida selvagem borbulha e que pede, pelo menos, dois dias para ser explorado. Nós fizemos uma visita autoguiada para ter mais liberdade. Dos animais "big five", só não vimos rinoceronte e o búfalo. Mas foi lindo, logo ao entrar no parque nos deparamos com três imensas girafas na estrada, olhando para a gente.

Neste ponto da viagem, eu já não estava mais tão preocupado com a questão da minha sexualidade ser proibida naquele país. Os muitos quilômetros de estrada nos mostraram que a densidade populacional da Namíbia é tão baixa que é possível dirigir por muitas horas sem cruzar com nenhum outro carro. É bizarramente animador.

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Horas sem cruzar outro carro nas estradas da Namíbia
Imagem: Rafael Leick

Ao sair do Etosha, nos separamos dos meninos, que fariam um roteiro diferente, e seguimos só nós dois, por muitas horas sem cruzar com humanos. Vimos muitos animais ao longo do caminho e era emocionante a cada vez. Passamos por uma aldeia Himba - uma comunidade de povos originários seminômades - onde acampamos por uma noite; pelas gravuras rupestres de Twyfelfontein; pela Costa do Esqueleto, onde as dunas do deserto mais antigo do mundo se encontram com um mar bastante revolto; por Swakopmund, a segunda maior cidade do país e casa de esportes radicais; e pelas dunas gigantes e árvores petrificadas de Sossusvlei, onde passamos uma noite no carro atolado na areia, o que quase nos rendeu uma prisão por dormir em um parque nacional. Mas isso é história para outro momento.

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Imagem: Rafael Leick

No fim das contas, apesar do risco por ser gay em um país homofóbico — que era real, diga-se de passagem — eu fiz uma das viagens mais incríveis da minha vida.

Se você decidir se arriscar assim, recomendo fazer uma boa pesquisa sobre o destino antes de embarcar. Hoje, seis anos depois, há muito mais conteúdo disponível online. Então, se joga!