Topo

Rafael Leick

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Fotos e apps apagados: os cuidados de viajantes LGBTQIA+ em países hostis

Em muitos países, a relação entre dois homens, por exemplo, é ilegal e você pode ser condenado por sodomia - wsfurlan/Getty Images/iStockphoto
Em muitos países, a relação entre dois homens, por exemplo, é ilegal e você pode ser condenado por sodomia Imagem: wsfurlan/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

30/08/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Viajar sendo parte da comunidade LGBTQIA+, como é o meu caso, exige mais do planejamento para garantir a segurança física e psicológica. Como diz o meme, "as LGBT não têm um dia de paz".

Em muitos países, a relação entre dois homens, por exemplo, é ilegal e você pode ser condenado por sodomia. Era o caso da Namíbia em 2017, quando visitei o país. Sempre sonhei em conhecer a África e, por promoção de passagem aérea, a Namíbia entrou nos planos. Em seguida, me questionei como seria minha experiência em um país onde é proibido ser gay e como eu poderia colocar em risco meu amigo hétero que viajaria comigo.

O questionamento entre saciar a vontade de conhecer um destino ou se privar dela por segurança é o que acontece com muitas pessoas LGBTQIA+ que querem conhecer países como Egito, Rússia, Tanzânia, Malásia e Qatar, onde vai acontecer a próxima Copa do Mundo. Se quiser se aprofundar sobre gays viajando para destinos homofóbicos ou pontos de atenção para lésbicas viajantes, recomendo dois textos, um do Viaja Bi! e outro de Universa.

Antes de sair do Brasil, falei com uma brasileira que morava lá. Ela me contou que a sociedade é bem machista, mas que turistas dificilmente teriam problemas, só quem mora lá. É curioso que, à noite, em uma balada, dois caras podem até ficar juntos, mas no dia seguinte, "nada aconteceu".

Rafael Leick no deserto da Nmíbia - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
Rafael Leick no deserto da Nmíbia
Imagem: Instagram/Reprodução

A Namíbia, no fim, foi incrível e livre de problemas, mas a preocupação não era exagero. A história que ouvi do Gustavo, um brasileiro que conheci pessoalmente na conexão em Luanda, na Angola, comprovou que, em alguns países, a coisa pode ficar realmente séria.

Prisão, ameaças e celular revistado

Antes da Namíbia, o piloto aéreo Gustavo Junqueira (@gusti_junqueira) passou por outros destinos com restrições a pessoas LGBTQIA+. Na fronteira entre Uzbequistão e Tajiquistão, viveu uma experiência (in)tensa. Em uma revista completa, os oficiais pediram para apagar fotos de sua câmera e reviraram seu celular e computador, buscando por arquivos de vídeo.

No celular, ele já havia ocultado aplicativos e fotos "sensíveis". Mas, em seu computador (pessoal, devemos lembrar), encontraram material com nudez masculina e o prenderam, dizendo que passaria pelo menos dez anos na prisão. Gustavo manteve sua versão de que era inocente e, com coragem, disse que tinha o melhor advogado.

Tashkent and Fergana Valley in Uzbekistan - Ozbalci/Getty Images/iStockphoto - Ozbalci/Getty Images/iStockphoto
Vista entre Tashkent e Vale de Fergana Valley no Uzbequistão; piloto brasileiro passou por apuros com autoridades locais
Imagem: Ozbalci/Getty Images/iStockphoto

O jogo de poder, nessas fronteiras, funciona melhor quando nos mostramos calmos, seguros e confiantes. Me senti muito vulnerável, claro, mas me concentrei em respirar para manter a calma. Me esforcei para não me desesperar ou mostrar desespero, mas não saíam da cabeça minhas amigas que viajavam comigo. Nos separaram logo no início da revista e eu não tinha ideia de como elas estavam ou se sabiam do que estava acontecendo.

Ouvindo a história, o cenário me pareceu desesperador: só um oficial com um inglês mediano e todos fazendo terrorismo com ele durante toda a noite, vendo o material "ilegal" repetidas vezes e cuspindo em seu pé. Ele me contou também que, na hora da negociação, pela cultura local, deve-se aceitar um cigarro. Ele tentou marcar o tom da conversa e recusou, inclusive de um oficial "tentando ser amigável" que o levou para fora do prédio, no meio do deserto, durante a madrugada.

Não sei vocês, mas nesse ponto da história, eu já estava gritando por dentro "pelo amor de Cher, Gustavo, não continue essa viagem". Pois ele continuou! Foi liberado pela manhã após transferir o material para um cartão de memória, apagar de seu computador e deixá-lo com os oficiais para "reter o material ilegal". Eu ainda acho que eles queriam diversão para a noite seguinte, só dizendo... Depois disso, ele seguiu viagem dirigindo para uma das estradas mais altas do mundo, entre a fronteira do Tajiquistão e Afeganistão.

Uma das estradas doTajiquistão - Tuul & Bruno Morandi/Getty Images - Tuul & Bruno Morandi/Getty Images
Uma das estradas do Tajiquistão corta um vale entre as montanhas
Imagem: Tuul & Bruno Morandi/Getty Images

Tire o coração da boca, pois a mensagem que o Gustavo me deixou é que, mesmo com essa experiência, o Uzbequistão é um dos países mais incríveis que já conheceu e que a sensação de liberdade que sentiu ao sair de lá o ajuda a relativizar os problemas hoje, contribuindo para levar uma vida mais leve e mais presente.

Nossa atitude é muito importante e ficar desesperado ou ter raiva não ajuda e põe o poder nas mãos de quem se alimenta das nossas fragilidades. Compaixão é sempre uma boa atitude, assim como se colocar no lugar do outro, como fiz com os soldados enrustidos, que não estariam vivos se não o fossem.

Gustavo, assim como eu e você, é um amante das viagens. E não espera, com esse relato, fazer com que as pessoas tenham medo de viajar, mas que busquem ter cuidado e atenção aos detalhes.

Cuidados antes de viajar

  • Então, ao planejar sua viagem, busque informações sobre o destino. Uma fonte de consulta é a ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association), que anualmente levanta o status das questões LGBTQIA+ em todos os países e oferece recursos, como um mapa de proteção e criminalização e um relatório sobre legislação trans. Se seu destino tiver sensibilidades, busque membros da comunidade local em grupos de redes sociais ou notícias da imprensa, para entender o cenário.
  • E, na hora de viajar para um país onde é crime ser queer, busque transparecer tranquilidade mesmo que esteja surtando por dentro, esconda ou apague aplicativos como Grindr e outros de relacionamento, fotos e vídeos que podem ser lidas como criminosas pela lei local, limpe seu histórico de conversas sensíveis e evite dar pinta. Isso tudo é horrível de se dizer e de fazer, eu sei, mas se é um lugar que você não abre mão de conhecer, é importante manter-se em segurança.
  • No meu caso, com um blog de turismo LGBTQIA+ e uma coluna no UOL Nossa com meu nome, a coisa pode complicar um pouco, confesso. Ao pesquisar meu nome, unicórnios saltam na tela. Mas lembre-se que vivo no Brasil, um dos países mais violentos e letais à nossa comunidade, mesmo sendo avançado em proteção jurídica.

Ah! E uma atualização sobre a Namíbia. Flávio Santos, o mochileiro sobre o qual contei a história na última coluna está pedindo carona no país nesse momento e me contou que um rapaz gay que o hospedou disse que a pauta tem avançado por lá pois a atual Ministra da Justiça, Yvonne Dausa, tem incentivado os movimentos nos bastidores. Casada com uma mulher na África do Sul, ela evita assumir uma posição de ativista. Mas, em 2021, deu declarações públicas de que pode acabar com a proibição do sexo gay por lá.

É... Acho que tem um pote de ouro no fim desse arco-íris!