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Como Maradona salvou a vida de um dos principais cineastas da atualidade

2.9.21 - Paolo Sorrentino, no 78º Festival de Cinema de Veneza, que marcou a estreia mundial do filme "A Mão de Deus"  - YARA NARDI/REUTERS
2.9.21 - Paolo Sorrentino, no 78º Festival de Cinema de Veneza, que marcou a estreia mundial do filme "A Mão de Deus" Imagem: YARA NARDI/REUTERS

Ana Flávia Oliveira

Do UOL, em São Paulo

03/09/2021 11h00

A expressão a mão de Deus ficou eternizada nos campos de futebol e na vida dos amantes do esporte na Copa do Mundo de 1986, quando Diego Maradona usou a única parte do corpo que não pode ser utilizada na modalidade para marcar um dos gols da vitória, por 2 a 1, da Argentina sobre a Inglaterra nas quartas de final. A seleção argentina sagrou-se bicampeã naquele mundial no México.

A "Mão de Deus" é também o nome do novo trabalho do cineasta italiano Paolo Sorrentino, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro com "A Grande Beleza", em 2014. Neste drama autobiográfico, Sorrentino narra a própria juventude e a trágica morte dos pais quando ele tinha apenas 16 anos.

A escolha pelo nome do filme tem muita relação com o astro do futebol mundial, morto em novembro do ano passado, pois foi justamente para assistir ao ídolo em campo que o jovem Sorrentino não teve o mesmo destino que os pais.

"Além de todas as coisas que já disse sobre Maradona, ele involuntariamente salvou minha vida. Perdi meus pais quando tinha 16 anos num acidente com o sistema de aquecimento da casa nas montanhas onde sempre costumava ir com eles. Naquele fim de semana, não os acompanhei porque queria assistir Maradona e ao Napoli disputando uma partida. Isso me salvou", explicou Sorrentino à revista estadunidense Variety em 2015.

Cartaz do filme "A Mão de Deus", de Paolo Sorrentino - Divulgação - Divulgação
Cartaz do filme "A Mão de Deus", de Paolo Sorrentino
Imagem: Divulgação

Original da Netflix, o filme "A Mão de Deus" - ou The Hand of God - estreou nesta quinta-feira (2) no Festival de Cinema de Veneza e chega à plataforma de streaming para o público brasileiro em 15 de dezembro.

Além de ter "involuntariamente" salvado a vida de Sorrentino, Maradona foi uma espécie de modelo para o cineasta. "Para mim, Maradona - além de ser o que foi por muitos da minha geração naquela cidade [Napoles], uma espécie de divindade estranha - é alguém que se tornou o que se tornou, apesar de tudo e de todos, apesar de o seu corpo não ser corpo de atleta, apesar de ter vindo de um contexto social de extrema pobreza. Não há analogia direta entre nós a esse respeito. Mas sua perseverança, com todas as devidas diferenças, foi também a minha perseverança. Eu queria me tornar um diretor e, se olhar para trás, não havia nada em minha formação familiar que apontasse para isso. Venho de uma família na qual havia poucos livros e poucos vínculos com o cinema", explicou Sorrentino à Variety.

A obra se passa na Nápoles dos anos 1980, a cidade da adolescência do autor que, ao mesmo tempo que sofria com a violência da máfia Gamorra, tinha o alento nos campos de futebol, muito em parte por causa de Maradona. O astro argentino foi contrato pelo Napoli em 1984 e só deixou o time em 1991 depois de se tornar um dos mais importantes jogadores da história do clube da cidade natal de Sorrentino.

"[O título do filme é] uma bela expressão, paradoxal porque foi dito por um jogador de futebol sobre a única parte do corpo que não pode ser usada no futebol. É uma bela metáfora, um emblema, um título que se relaciona ao acaso ou à divindade, se você acredita nisso. Eu acredito no poder semidivino de Maradona", afirmou Sorrentino a respeito da frase "Eu marquei um pouco com a cabeça, um pouco com a mão de Deus", dita por Maradona ao ser questionado sobre o gol contra os ingleses em 1986.

Volta a Napoles e redescobrimento da vitalidade

Paolo Sorrentino no estádio do Napoli durante a filmagem do filme "A Mão de Deus" - Gianni Fiorito/Divulgação - Gianni Fiorito/Divulgação
Paolo Sorrentino no estádio do Napoli durante a filmagem do filme "A Mão de Deus"
Imagem: Gianni Fiorito/Divulgação

O diretor, que voltou a Nápoles após 20 anos, afirma que está "maduro o suficiente" para contar sua própria história no filme mais pessoal da sua carreira. "Fiz 50 anos no ano passado e pensei que era maduro o suficiente para enfrentar um filme tão pessoal. [...] É um filme em que venho pensando há muito tempo. Mas por muito tempo também achei que não iria filmar e usaria o roteiro - que é a forma de escrita mais adequada para mim - apenas para que meus filhos o lessem. Nunca pensei que teria coragem de fazer esse filme, porque foi muito complicado emocionalmente para mim. Significava voltar à 'cena do crime', por assim dizer. Então, com meus projetos nos Estados Unidos em espera devido à covid, enquanto eu estava naquela bolha de bloqueio, pensei que o verão que se aproximava seria uma época de renascimento, então pensei: 'Vamos ver se consigo filmar'", disse em entrevista à imprensa.

O renascimento a que se refere é a volta à cidade natal e o redescobrimento da vitalidade juvenil. "Fazia anos que eu não passava tanto tempo lá. Percebi que Nápoles, para o bem ou para o mal, está explodindo de uma energia vital que redescobri. A vitalidade desta cidade é algo que foi enterrado na minha juventude, que eu tinha esquecido completamente. E filmar lá foi fácil para mim porque, neste filme, eu retrato a Nápoles que conheci quando criança, os lugares que conheci quando criança. Eu não tive que enfrentar todas as complexidades de quando você filma na Nápoles de hoje que é tão complexa, multifacetada e cheia de problemas. Acabei de colocar na tela tudo que me lembrava de quando nasci até os 24 anos."

"A mão de Deus" é estrelado por Filippo Scotti, que dá vida ao alterego de Sorrentino; além de Toni Servillo, astro de "A Grande Beleza", e Teresa Saponangelo que vivem os pais do jovem.