Cartão Vermelho

Juca Kfouri e José Trajano estreiam programa no UOL e celebram a amizade de quase 50 anos graças ao jornalismo

Beatriz Cesarini e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Keiny Andrade/UOL

Aquela tarde não foi das melhores para José Trajano. Ele esqueceu os óculos no táxi quando estava a caminho dos estúdios do UOL. Para piorar, quando pegou o celular na tentativa de localizar o motorista, o aparelho nem ligou. Tela preta.

Juca Kfouri estaria na mesma gravação e contou vantagem: "Eu não esqueço porque só uso o meu assim", mostrando seus óculos de leitura com ímã frontal na armação, pendurado no pescoço. "Porra, Juca. Mas isso é coisa de velho", reagiu Trajano. A risada foi geral.

Trajano, Juca e seus mais de cem anos (somados) de jornalismo começam uma nova história amanhã (8). Toda terça-feira, às 15h, eles estarão à frente do programa Cartão Vermelho, no UOL. É uma conversa sobre esporte, política, cultura, atualidades, dicas e tudo o mais que der na telha. Eles dizem saber como começa, não como termina.

Assunto não falta. Amigos, trabalham juntos há quase 50 anos. Nesta entrevista, falaram sobre o que os une e desune e posaram para fotos que garantiram mais momentos divertidos.

"Eu fiquei 15 minutos fazendo pose e o Trajano só cinco. Ele se impôs e eu sou o babaca, né?", brincou Juca, desconfortável com os pedidos de mãos e pés aqui e ali que buscavam o melhor clique. "140 anos de jornalismo e nos prestando a posezinhas" e "sobrevivemos" foram as frases depois do ensaio, sempre num tom ao mesmo tempo leve e ranzinza.

No fim, Juca deu uma carona ao Trajano, ainda sem óculos, até em casa. Depois de uma hora na frente das câmeras, ainda tinham mais papo pra botar em dia. Imagina quando chegar a hora do Cartão Vermelho.

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Assista aos melhores momentos da conversa

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Da Placar ao UOL, com Lula no meio

Zé e Juca são dupla sertaneja. "Mas das antigas, tipo Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho... de lá pra cá não encontro uma que faça o meu gênero", avisa Trajano.

Eles se conheceram em 1974. Trajano era repórter da revista Placar e Juca foi contratado como chefe de reportagem. Muitos anos depois, os papéis hierárquicos se inverteram: na ESPN, Trajano foi editor-chefe e Juca, comentarista.

Entre uma fase e outra, histórias e histórias. "Como dupla sertaneja ficou mais marcado no Cartão Verde, da Cultura. Marcou bastante", lembra Zé. A formação mais tradicional do programa, que começou em 1993 e segue no ar até hoje, tinha os dois e Flávio Prado como apresentador. Era concorrência dura com o Mesa Redonda, da TV Gazeta, de Roberto Avallone, nos domingos à noite. Naqueles tempos, não tinha o número enorme de programas e canais esportivos de hoje, então os dois eram favoritos do público.

O Mesa Redonda, mais gritado, popularesco. O Cartão Verde, mais light.

Além de Placar, ESPN e Cultura, ainda teve a TVT (TV dos Trabalhadores), emissora do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista, sediada em São Bernardo do Campo. Lá, eles entrevistaram juntos o ex-presidente Lula em junho de 2019. Na época, Lula estava preso em Curitiba e a entrevista precisou ser autorizada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

O ex-presidente foi solto em novembro daquele ano após 580 dias e hoje lidera as pesquisas para a sucessão de Jair Bolsonaro.

Keiny Andrade/UOL

Política e futebol

Sim, José Trajano e Juca Kfouri vão falar de política no Cartão Vermelho. Aliás, eles acham que não dá pra falar de futebol, de esporte, sem que política esteja no meio. Antes de a entrevista começar, já era o assunto entre eles: "Que mundo que nós estamos?".

"Aí vem o leitor e diz: 'Mas eu venho aqui para ler esporte' e não sei o quê. Não é possível, Zé, que vendo o que você está vendo nesse momento ainda haja quem diga que esporte e política não se misturam. A Fifa, a Uefa e o Comitê Olímpico banem a Rússia de todas as competições, coisa que nunca fizeram com os EUA. Sem justificar e deixando claro que não se justifica o que o Putin está fazendo, mas é engraçado", reflete Juca.

O projeto Cartão Vermelho já foi oferecido pelos jornalistas a outros veículos de mídia antes do UOL. Gravaram até um programa piloto. "O mercado temeu um pouco a ideia do Cartão Vermelho, como se fosse coisa de comunista", explica Juca Kfouri, antes de resumir o projeto:

"É um cartão vermelho, porque é implacável com os deslizes. Sejam de quem for."

O cartão verde era uma cor que não existe no futebol. A ideia era homenagear grandes jogadores, premiá-los. Agora, é o vermelho, implacável. Fica faltando só o cartão amarelo. "Mas amarelo não tem graça, é neutro. E não somos neutros", brinca Trajano. E Juca completa:

"Se você acredita em fake news e se você acha que a situação no Brasil deve continuar como está, não veja que você vai se irritar. Não nos dê audiência (risos)".

No auge da estupidez bolsonarista, tanto o Zé quanto eu fomos agredidos, xingados [por se posicionarem politicamente]. O Zé num restaurante e eu na minha casa, de madrugada. Chamavam 'Juca Kfouri petista' e passava na minha cabeça: 'o que meus vizinhos têm a ver com isso?' Uns caras gritando e acordando o prédio e os prédios em volta."

Juca Kfouri, sobre retaliação por posicionamentos políticos

Eu, idiota que sou, desci e fui falar com os cretinos. Corri risco, mas, graças a Deus, deu tudo certo. Eu era contra o impeachment [de Dilma Rousseff, em 2016] e manifestava isso, mas virou uma coisa perigosa. Hoje em dia, está ao contrário e me dá muita esperança. É impressionante o número de pessoas que passa, me reconhece e diz 'Juca, você me representa'. Mudou."

Juca Kfouri

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Juca é coração. Trajano é razão

Toda a dupla tem um contraponto, e com Juca e Trajano não é diferente. Nos trejeitos e nas falas em que um completa o outro, logo se nota que o primeiro é coração e o segundo razão —apesar de a imagem pública dos dois sugerir o contrário.

Quando Juca foi elogiar o amigo, ele se derreteu: "O que seria do Juca sem o Trajano? Eu responderia essa questão dessa maneira: seria uma pessoa bem mais pobre". "Ih, ele levou para o lado sentimental", respondeu Trajano. "Mas é isso mesmo. Cada um de nós tem a sua carreira e suas coisas feitas, até mais bem feitas do que mal. Mas claro que ter você por perto é um enriquecimento, Zé", prosseguiu Juca.

E, apesar da divergência na demonstração de sentimentos, Juca e Trajano têm uma preocupação em comum em relação ao tema: fazer um jornalismo sério, sem brincadeirinhas desnecessárias, mas longe do mau humor.

"É interessante a gente abordar um tema que será uma das marcas registradas do Cartão Vermelho. É o fato que você pode ser sério sem ser mal-humorado. Que você ser sério e ao mesmo tempo você pode ser leve, brincar. O que você não pode é fazer o que se fez com a programação esportiva, que é só palhaçada e a despolitização total de tudo", disse Juca.

"É isso que me aflige, Juca. Uma mesa redonda de esportes e tal. Pá, pá, pá. Pô, mas nós estamos com uma guerra aí [entre Rússia e Ucrânia]? Outro dia morreu a Elza Soares e, nos programas de esporte, continuam falando como se nada tivesse acontecido. Será que não tem um cara para levantar a mão e falar: 'Olha, o programa hoje é dedicado a Elza Soares, maior cantora desse país, vou recomendar uma música para tocar, um clipe'? Nada", concordou Trajano.

Keiny Andrade/UOL

Quem se rendeu à vida digital

Pouco antes do início da entrevista, o celular de Trajano ressuscitou. "E o seu telefone não para de apitar. Mas é melhor você não desligar, né, Zé?", disse Juca, preocupado com o problema no aparelho do amigo. "Perdi meus óculos no táxi e o telefone estava morto. Agora ele está vivo, então deixa, todo mundo vai entender", respondeu Trajano. "Isso, isso, deixa apitar", completou Juca.

As mensagens de WhatsApp eram responsáveis pelo barulhinho incessante durante o papo. Jornalistas das antigas, eles são avessos às redes sociais, mas não encontraram uma forma de fugir da digitalização.

"Acho que rede social é uma m? É preocupante. A gente vive um mundo muito enlouquecido com essa coisa. E tem a dependência também. O número de horas que eu fico no celular? Eu quero parar com isso, mas não consigo. É uma doença", disse Trajano.

Juca, então, relembrou dos tempos em que o amigo brigava com os outros durante coberturas justamente pelo uso de aparelhos eletrônicos. "Em 2006, na Copa da Alemanha, todo mundo estava ouvindo o tal do iPod e ninguém conversava, você ficou p da vida. Eu dizia que você se renderia e você: 'Não há hipótese'. Mas não tem jeito, você se rendeu, Zé".

Trajano é moderno. Tem Twitter, Instagram, Facebook e um site, o Ultrajano. Juca não foi contaminado e já avisou que não sabe como utilizar essas plataformas nem tem o interesse em aprender. Ele, inclusive, tenta alertar pessoas na rua sobre os riscos da distração com redes sociais.

"Se sabe que eu sou meio metido e já quase apanhei. Ali na região onde eu ando, rouba-se muito celular. Às vezes, eu vejo as pessoas inteiramente distraídas e eu passo, tiro o celular da mão. A pessoa toma um susto e eu: 'É só para te alertar que nessa região, ontem roubaram dois celulares'. E vou embora", contou Juca. "Porra, e se te confundirem com um ladrão?", indagou Trajano. "É, eu realmente não deveria fazer isso, mas já surpreendi até um policial".

Profissão: influencer

O que mais me aflige nos tempos modernos? São os chamados influencers. Qual a profissão? Influencer... Ou seja, um vagabundo às vezes, que não faz rigorosamente nada, tem três milhões de seguidores, porque falou que esse copo é bonito, sei lá... Qualquer barbaridade. Não estou falando que é todo mundo. O Casimiro é legal. Muita gente faz um trabalho muito legal. Mas tem pessoas que você nem sabe direito quem são e não sabe do que se trata, mas mesmo assim têm milhões de seguidores."

José Trajano

Ah, sim, os influencers. É, realmente, eles fazem qualquer barbaridade e ficam populares. Um falou que nazismo é igual comunismo, que deveria ter partido nazista legalizado no Brasil... É isso. Falam qualquer coisa, acham que estão num boteco. Mas o que acho notável é que, mal ou bem, a gente foi capaz de se adaptar a isso. De repente, estar em todas as mídias. Mais em uma, menos em outra, mas estamos em todas, passando o recado. Isso bem é aquilo que o Umberto Eco disse: 'As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis'."

Juca Kfouri

Pandêmicos

O Cartão Vermelho terá Juca e Trajano juntos, mas distantes fisicamente. É a nova vida forçada pela pandemia da covid-19. Cinema? Nem pensar. Nos últimos dois anos, os amigos só saíram de casa para ver um filme nas telonas. Por coincidência (ou pura conexão de amigos), a escolha foi a mesma: "Marighella".

Os amigos, então, engataram um papo sobre séries e filmes recentes a que tinham assistido e garantiram que o novo programa no UOL também será recheado de dicas culturais. Juca é fã dos gângsters de "Peaky Blinders", Trajano curte a série portuguesa "Glória". Ambos ficaram encantados com o novo longa de Pedro Almodóvar, "Mães Paralelas".

— Aliás, você viu o novo filme do Almodóvar? — perguntou Trajano — Que coisa linda, né?

— Aquele final é massacrante, Zé. Eu fiquei dois dias pensando naquele final, que nós não vamos falar aqui evidentemente.

— Sabe, Juca, tem uma música da Adriana Calcanhotto que fala das cores do Almodóvar. E o que me impressiona do filme são as cores, os fundos... Está tudo lá trás, vermelho, azul, para dar uma temperatura para a cena.

— Eu acho que vai ganhar o Oscar, né? Não é possível —sobre a performance de Penélope Cruz, indicada ao Oscar de melhor atriz.

— Sei lá, mas que merece, merece. Aliás, duas coisas interessantes que eu vi agora no fim do ano, que a gente fica muito em casa agora. Tive covid recentemente, você também teve, né? Mas, então: foi aquela série portuguesa "Glória", que passa ali na Guerra Fria. Tem a CIA, KGB.

— Essa eu não vi. A série que me pegou foi aquela dos gangsters?

— Violento para burro, Juca.

— É... Eu esqueci o nome da família... Não sei o que Blinders, não sei. Vai agora sair a nova temporada, a sétima e a última. Mas que é fantástica.

— Mas sabe o que me aflige muito em série? É que eu quero ver em uma tacada só. Então, são duas, três da manhã e eu tô vendo. Entro em desespero depois.

— É... "House Of Cards", essa aí a última temporada eu fiquei sete horas vendo.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

A única briga

Tantos anos de amizade e apenas uma briga. Eles garantem que foi boba. Envolveu política, sindicalismo e greve. Juca e Trajano ficaram cerca de uma semana rompidos e quem reuniu os amigos foi o jornalista Sérgio de Souza, que morreu em 2008.

"O Zé sempre foi mais 'brizolista' e eu era do 'partidão'. O pessoal do [Leonel] Brizola era muito mais, digamos, agressivo, mais de botar a cara a tapa. O pessoal do partidão era mais recuado, mais dos bastidores, articulações... Foi isso", explicou Juca. Lembrando que Leonel Brizola era o principal nome do PDT (Partido Democrático Trabalhista) e o "partidão" era o Partido Comunista.

Quando se fala em desentendimento entre os amigos jornalistas, há quem lembre de um clássico programa do Cartão Verde em que Trajano decide ficar totalmente mudo após discutir com Juca e Flávio Prado no primeiro bloco do programa.

"A surpresa foi quando Roberto Muylaert, que era o presidente da Fundação Padre Anchieta, portanto presidente da TV Cultura, disse que o programa tinha dado a maior audiência. As pessoas tinham adorado o silêncio do Zé Trajano. Aquilo foi impagável. E todo mundo achava que tínhamos rompido. Nada. Comemos pizza e tomamos chope naquela mesma noite", relembrou Juca. "No Cartão Vermelho, não vai poder acontecer isso, um só não pode. Senão vira um monólogo", completou.

"O Cartão Vermelho será nos moldes de hoje. Cada um na sua casa. Todas as terças, às 15h", encerrou Trajano.

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