Homofobia desde a base

Apenas 35% dos times escalaram atletas com número 24 na Copinha. Presidente do TJD diz que "não usaria" número

Alexandre Araújo e Talyta Vespa Do UOL, no Rio de Janeiro e em São Paulo Ettore Chiereguini/AGIF

O Flamengo foi notificado judicialmente na semana passada por não ter, entre os jogadores inscritos para a Copinha, um camisa 24. A sequência numérica era interrompida, passando do 23 para o 25. O autor da denúncia foi a ONG Grupo Arco-Íris, que luta pelos direitos de pessoas LGBTQIA+. O Rubro-Negro, entretanto, foi isento de qualquer penalidade após se manifestar alegando que a presença de um jogador 24 não é obrigatória segundo o regulamento.

A denúncia, porém, levanta uma questão: qual o tamanho da rejeição ao número 24? No jogo do bicho, o 24 representa o veado, animal que se tornou socialmente associado a homossexuais. Ao reforçar a ligação, cria-se mais uma forma de disseminar o preconceito.

O UOL, então, checou as súmulas da primeira fase da Copa São Paulo de Futebol Júnior. E descobriu que apenas 35% dos times inscreveram um jogador com a camisa 24 em uma de suas três primeiras partidas no torneio.

Em 2022, já não é novidade falar sobre igualdade e diversidade. O futebol não deveria ser um mundo à parte. Nos estádios, gritos homofóbicos e racistas já são punidos com afinco. Então, por que reproduzir a homofobia na maior das subjetividades, alegando ser escolha pessoal usar ou não o número, permanece aceitável?

Ettore Chiereguini/AGIF
Marcelo Cortes / Flamengo

Ação foi arquivada

Como resposta à notificação judicial, o Flamengo disse que também não usou na Copinha o número 12 — "aposentado" em homenagem à torcida — e indicou que a identificação nas camisas foi definida pelos jogadores. E citou que tem promovido ações contra o preconceito, como o fato de Gabigol ter usado a camisa 24 na final da Taça Guanabara de 2020 (na foto acima).

O Fla ainda pontuou que a camisa 24 é usada normalmente na Libertadores e voltou a 2019 para citar que o número estava nas costas de Pablo Marí na campanha do título continental — lembrando que Marí é espanhol e o preconceito contra o número é algo brasileiro.

Na última terça-feira (18), a procuradoria do TJD-SP pediu o arquivamento da ação. O órgão ponderou, inicialmente, sobre questões processuais e entendeu que "possui interesse na causa, contudo não tem capacidade processual para atuar" no caso, à luz do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

Na peça assinada pelo procurador Vinicius Marchetti de Bellis Mascaretti, há a argumentação de que "é suposição afirmar que o número 24 não foi utilizado por razões discriminatórias e homofóbicas". O procurador ainda ressaltou que "há necessidade de provas mais concretas para justificar tal afirmação" e que "não é possível constatar o dolo na prática de ato discriminatório" por parte do Flamengo.

Leandro Moraes/UOL

Não sou homofóbico, mas, se jogasse num time, eu não iria querer a camisa 24."

Delegado Olim, presidente do Tribunal de Justiça Desportiva de São Paulo, que analisou a denúncia contra o Flamengo na Copinha.

Ao UOL, o presidente do TJD-SP, o delegado Antônio Olim, disse que só precisaria "canetar a decisão da procuradoria" caso houvesse recurso. E que, nesse caso, endossaria o arquivamento. "Recebi duas denúncias [do Grupo Arco-Íris], uma contra o Flamengo do Rio, por causa da camisa, outra contra o Flamengo-SP, por gritos homofóbicos vindos da torcida, a respeito dos quais mandei instaurar um inquérito, porque torcida precisa aprender a respeitar as pessoas", disse à reportagem.

"Mas, sobre o número, a maioria [dos times] não tem. Como vou tomar alguma providência? É complicado", seguiu Olim. Antes do arquivamento, ele já tinha avisado à reportagem que não pretendia levar adiante a denúncia. A decisão de dar um prazo para que o Flamengo se manifestasse cumpriria apenas protocolo. "Têm prédios em São Paulo que não tem o 13º andar. Vou eu ficar batendo de prédio em prédio perguntando para o síndico por que não tem o número 13?"

Reprodução/Instagram
Claudio Nascimento em foto de 2020

Arco-Íris recebeu mais de 200 mensagens de ódio após ação

Presidente do Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT e Diretor de Políticas Públicas da Aliança Nacional LGBTI+, Claudio Nascimento explica que as ações pela ausência do número 24 nos elencos têm a intenção de jogar luz a um debate sobre uma prática que tem como consequência a perpetuação de um preconceito no esporte. O grupo foi responsável, também, por uma ação contra a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) durante a Copa América.

"A tomada dessa decisão [entrar com a ação] foi em razão das repetidas atitudes do Flamengo em insistir na mesma visão da CBF [Confederação Brasileira de Futebol], em tratar o 24 como um número que remete a uma ideia de que está associado ao veado e, de alguma forma, isso teria prejuízo para o jogador. Isso, na verdade, só faz alimentar e aprofundar a discriminação. O número 24 só é mais um número, como qualquer outro".

Ele conta que logo que a ação se tornou pública, o Arco-Íris recebeu diversas mensagens preconceituosas: "Parece bobagem, mas o Grupo Arco-Íris, assim que tomou a iniciativa de acionar juridicamente o Flamengo, recebeu mais de 200 mensagens homofóbicas, transfóbicas, lesbofóbicas em nossas páginas. Isso só demonstra o quanto ainda o estigma contra a comunidade LGBT vem sendo associado ao futebol, confirmando exatamente a iniciativa da nossa ação: chamar a atenção ao debate sobre a questão LGBTI, LGBTIfóbica no esporte", afirmou.

O Flamengo e outros clubes que ainda permanecem com essa ideia [do número 24] prestariam um grande serviço ao futebol, à comunidade LGBT e à sociedade ao quebrar esse tipo de estigma, que só faz valorizar a discriminação. O mundo do futebol não pode ficar à parte das discussões da sociedade, não pode ser uma ilha nas demais questões de cidadania".

Claudio Nascimento, presidente do Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT

Nosso papel, enquanto entidade da sociedade civil, é ter uma voz. Não é para condenar, mas para chamar a atenção de CBF, Flamengo e outros clubes que está na hora de acabar com discriminação. Não se trata de escolha, mas de construir uma nova postura. Não dá para fingir que está tudo bem. Está na hora do futebol tomar uma atitude assertiva e ter responsabilidade".

Claudio Nascimento, presidente do Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT

América-MG
Atletas do América-MG antes de jogo da Copinha

Semifinalista, camisa 24 do América-MG sofreu homofobia na Copinha

Lateral do América-MG, Jurandir Brandão revelou ao UOL que foi vítima de gritos homofóbicos durante a partida contra o São Carlos, pela segunda rodada da fase de grupos da Copinha. A torcida gritava "bicha" a cada bola perdida do América-MG —o time disputa a semifinal do torneio contra o Santos na sexta-feira (21), às 20h.

Aos 17 anos, o jogador afirma não ter se importado com as ofensas. "Sei que partiram de pessoas que não sabem o que dizem nem respeitam os outros", falou. "O América-MG denunciou e se pronunciou, o que me tranquiliza, porque faz com que sejamos instruídos e não nos tornemos adultos que pensam dessa forma ruim. Me sinto aliviado por jogar em um time que não tem esses preconceitos".

O América-MG se pronunciou no Twitter: "O América Futebol Clube repudia os gritos com injúrias homofóbicas proferidas contra os nossos atletas pela torcida do São Carlos-SP durante a partida dessa quinta, pela Copinha. Não há espaço para este tipo de fala dentro do futebol e em nenhum local."

Capitão da equipe, o volante Kevyn publicou a mesma mensagem e um vídeo em que a torcida grita "Bicha" após um tiro de meta do goleiro da equipe, Cássio.

Jurandir nasceu em Rio Negro, em Mato Grosso do Sul, e começou a jogar futsal aos cinco anos. De escolinha em escolinha, conheceu um professor que o levou para participar da peneira do América-MG. Há três anos, faz parte do elenco do clube.

O atleta conta que a decisão sobre o número 24 partiu do próprio clube, mas foi muito bem aceita. "Me sinto muito bem com a camisa, não tenho preconceito".

Mourão Panda / AFC

Os times precisam incluir o 24. É um passo pequeno, mas importante para combater o preconceito no futebol tanto no Brasil como no mundo. Não cabe mais no futebol esse menosprezo a um número que carrega um estigma de preconceito".

Jurandir, camisa 24 do América-MG

Cesar Greco/Palmeiras

Garotos tratam número com naturalidade

Goleiro do Palmeiras na Copinha, José Henrique Venâncio, 17, é quem veste a camisa 24 do time, também semifinalista do torneio. É a primeira vez que Zé participa do torneio, e é clara a emoção na fala do garoto. "Sempre vesti a 24, mesmo em amistosos. Nunca me preocupei nem nunca fui zoado ou xingado por companheiros ou adversários. Até porque acho que usar um número para ofender alguém por causa da sexualidade dessa pessoa é uma coisa muito ignorante".

Zé reitera o lema palmeirense, de que o time é de todos. "Não temos distinção nem preconceito. O Palmeiras tem se posicionado a favor do combate de preconceitos na sociedade, e reforçou isso com essa história [da denúncia contra o Flamengo]. Eu penso da mesma forma, meus colegas também".

Para o goleiro, reforçar o estereótipo da homofobia dentro do esporte causa grandes estragos até mesmo para os jogadores. "Muitos têm medo de se assumirem LGBT porque o futebol é muito preconceituoso. Um jogador homossexual sofre preconceito até dos colegas do próprio time. Isso precisa mudar".

Ivan Storti/Santos FC
Kevin Malthus (de colete) ao lado de Zanocelo em treino do Santos

O mesmo pensa o 24 do Santos, Kevin Malthus, de 19 anos. Ele não está entre os atletas da Copinha porque subiu para o profissional e está fazendo a pré-temporada no time de Fábio Carille. Ao saber que assumiria a camisa 24, Kevin diz ter ficado grato pela oportunidade.

"Na minha estreia no profissional, vesti a 23. Alguns jogos depois, deram a 24 e recebi muito bem a camisa. Poucos atletas usam a numeração e vejo isso como uma barreira quebrada pelo Santos. Me sinto privilegiado de poder vestir esse número", diz o meia, que já participou de 11 jogos e marcou um gol no profissional.

Acho importante a inclusão do número em todos os clubes. É apenas um número, e criaram um preconceito homofóbico em cima dele. Grandes atletas do esporte utilizaram a camisa 24, como Kobe Bryant, e o representou da melhor forma possível. Sempre vou levantar a bandeira da utilização da numeração, não só pelas pessoas que a representarão, mas sim para a evolução do esporte como um todo."

O que pensam outros 24 da Copinha

Arquivo Pessoal

"Quando recebi a 24, nem pensei em qualquer tipo de preconceito. Só depois de um tempo que fiz a associação, mas não tive nenhum problema, pelo contrário. Nunca sofri bullying nem ouvi comentários preconceituosos por parte de torcidas adversárias, e isso mostra que estamos evoluindo. É um avanço entre as novas gerações, o tempo vai passando e a gente vai aprendendo. É preciso tirar esse peso, a homofobia é ultrapassada", Gabriel Bozzolan, 19 anos, atacante do São Bento.

Arquivo Pessoal

"Saiu a lista dos convocados para a Copinha já com os números, e foi a primeira vez que recebi o 24. Fiquei muito tranquilo. Até achei que pudesse sofrer bullying, mas não aconteceu. E é um sinal de que isso está acabando, graças a Deus. Tem que acabar. Acompanhei o que rolou na seleção e, mesmo com a repercussão negativa, não colocaram o 24. O que define a pessoa não é a sexualidade, muito menos um número. É o caráter", Guilherme Aquino, 18 anos, volante do Flamengo-SP.

Divulgação/SKA Brasil

"Quando saiu a lista da Copinha, vários torcedores postaram a minha foto com o número, incentivando. Isso deveria mudar, as pessoas precisam começar a aceitar a diversidade. É só um número que não diz nada, e mesmo se dissesse, qual o problema? Times que não têm o número 24 reforçam ainda mais o preconceito contra pessoas LGBTQIA+. Já passou da hora de esse tipo de preconceito parar de existir", Carlos Eduardo, 17 anos, zagueiro do SKA Brasil.

DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO

Preconceito na Copa América? Seleção não tinha camisa 24

A seleção brasileira foi a única equipe na Copa América, disputada no Brasil em 2020, que não utilizou o número 24. Procurada à época, a CBF não quis explicar o motivo dessa decisão. A numeração pulava do 23 do goleiro Ederson para o 25 do volante Douglas Luiz. Nos outros nove países que participaram do torneio, um atleta foi inscrito com o 24 nas costas. A Conmebol não faz imposições sobre a numeração —como a FPF na Copinha.

Na ocasião, o Grupo Arco-Íris ajuizou ação, na 10ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro contra a CBF, em que questionava a entidade sobre a ausência do número entre os convocados pelo técnico Tite. Também fez uma representação contra a CBF no Comitê de Ética da Fifa.

Pouco antes, o Corinthians protagonizou outro evento homofóbico em relação à camisa. Na chegada do volante colombiano Cantillo ao clube, em janeiro de 2020, o então diretor de futebol, e hoje presidente, Duílio Monteiro Alves, disse "24 aqui não" no meio da apresentação. O jogador usava o número no Júnior Barranquilla. Duilio classificou a própria fala como "brincadeira infeliz". Menos de um mês depois de ser apresentado, Cantillo foi a campo com o 24 nas costas.

Nos últimos anos, no embalo de outras campanhas contra a homofobia, o futebol também viu diversos pedidos para que o número fosse normalizado em ações publicitárias e em redes sociais. Embalado por uma homenagem a Kobe Bryant, que morreu em janeiro de 2020 e usava essa camisa na NBA, o Bahia trocou o número de um de seus atletas para o 24 e disse que "esse mito já está na hora de ser ultrapassado".

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