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Lenda do telecatch hoje é taxista e já teve de desmentir a própria morte

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

18/05/2015 06h00

“Eu não te conheço de algum lugar?”. Do banco dianteiro de seu táxi, Walter Jorge Ronchi por diversas vezes ouve de seus passageiros mais velhos esta frase. O físico hoje não é o de um fisiculturista e as rugas denunciam os 73 anos de idade. Mas as feições não mentem. Aquele no volante é Mister Argentina, um dos principais nomes do telecatch brasileiro, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Naqueles tempos, sair na rua era quase impossível. Hoje, a tranquilidade é tanta, que em seu país natal achavam que ele havia morrido.

Um lutador da turma dos bonzinhos, Mister – como é chamado pelos seus clientes, mesmo que eles não saibam de sua origem na luta livre – foi contemporâneo e grande amigo de Ted Boy Marino, falecido em 2012. Enfrentou nomes como Aquiles, o Matador, Michel Serdan, Fumanchu, Trovão e tantos outros, em uma carreira que se estendeu até os 58 anos e passou por TVs como Excelsior, Tupi, Globo, Record e SBT, além de fazer apresentações por todo o país.

Mister 3 - Maurício Dehò/UOL - Maurício Dehò/UOL
Walter, o Mister Argentina, ainda é reconhecido pelos clientes quando guia seu táxi pelas ruas de São Paulo
Imagem: Maurício Dehò/UOL

A fama de Mister Argentina começou lá em seu país, quando ele atuava sob outra alcunha, El Gran Sullivan. Filho do dono de uma metalúrgica, desde cedo ele se dedicou a atividades físicas, enquanto também fazia algumas funções na fábrica. Fez fisiculturismo – modalidade que lhe rendeu o título de Mister Argentina e o apelido que seria usado no Brasil – e a luta greco romana o levou ao mundo do telecatch. Gran Sullivan era um personagem inspirado em John Sullivan, o primeiro campeão dos pesados de boxe, quando a nobre arte passou a usar luvas.

Foi só mais tarde que ele chegou ao Brasil e construiu toda a fama que se viu por aqui. Por conta de seu estabelecimento em São Paulo e do fim da carreira no telecatch, seus compatriotas argentinos deixaram de receber suas notícias, e foi assim que surgiu o rumor de que já teria morrido.

“Um outro rapaz fez esse personagem (Sullivan) e não sei se brincando ou de verdade falou que o Mister havia morrido, e a notícia espalhou”, conta Mister. Foi só em contato com um jornalista de lá que o argentino escreveu um longo texto para falar de sua vida e dar as notícias de que estava, na verdade, muito bem. “Oi, estou aqui”, disse ele, descrevendo sua vida no Brasil, ao lado da mulher que o acompanha há cerca de 50 anos e seus dois filhos.

Mister - Arquivo/Mister Argentina - Arquivo/Mister Argentina
Mister Argentina é só elogios a Ted Boy Marino, pelo talento dentro do ringue e pela tranquilidade do bom amigo fora dele
Imagem: Arquivo/Mister Argentina

Fã de fotografias, Mister andou a vida toda com câmeras, registrando os bastidores da luta livre e revelando os filmes em sua casa, num quarto escuro. Hoje, tem tudo em um arquivo em sua casa e saca livros e imagens de sua carreira quando dá suas raras entrevistas.

Depois do telecatch, Mister Argentina fez diversas atividades, enquanto já mantém o táxi há 20 anos, em um ritmo tranquilo de trabalho. Foi gerente de um pub, trabalhou também com uma casa noturna e deu aulas de musculação. Tudo num estilo mais discreto e em que nem gosta tanto de ser reconhecido. “Eu fico orgulhoso quando as pessoas me reconhecem, mas não gosto muito de ter que explicar as coisas do passado. Gosto de conversar sobre política, economia, futebol...”

Como uma das maiores estrelas do telecatch, o argentino admite que a carreira foi lucrativa, principalmente na fase da TV Tupi, que tinha um alcance para mais cidades que as rivais. Na hora dos combates, o telecatch chegava a liderar a audiência em relação à Globo, concorrendo com a novela Dancin’ Days, em 1978.

“Ganhei muito. Mas gastei. Eu vivo sob uma filosofia de vida, cheguei à conclusão de que não é feliz com quem tem muito. Feliz é quem se satisfaz com o que tem”. Hoje, a situação financeira é estável, e os anos de taxista já estão chegando ao fim, já que Mister prevê a aposentadoria em breve, para relaxar com a família e em suas viagens para pescar.

Os dois maiores amigos de Mister nos tempos de lutas foram Ted Boy Marino, o queridinho dos brasileiros, que morreu em 2012, e Aquiles, o Matador, com quem foi sócio na empresa Reis do Ringue por 14 anos.

“O Ted é um caso especial. Um lutador maravilhoso e, com aquela áurea, era maravilhoso como pessoa. Ele sempre estava na dele, de boa. E, como lutador, ninguém fazia finais como ele. Claro que ele estava acompanhado de grandes lutadores, Demônio Cubano,  Tigre Paraguaio... Gente que sabia muito e que o protegeu. Trabalharam para Ted. Para levar a audiência lá em cima, era um trabalho em conjunto. Ted era Ted”, elogiou.

Mister 2 - Arquivo/Cintia Siqueira - Arquivo/Cintia Siqueira
Mister com seu bigodão de Gran Sullivan, personagem que viveu em seus primórdios na luta livre, na Argentina
Imagem: Arquivo/Cintia Siqueira

Mister conta que mal podia sair na rua, que era rodeado de pessoas pedindo por autógrafos e querendo tirar uma casquinha do fortão.

A época, rendeu grandes histórias, é claro. Em uma delas, o argentino conta que fez um acordo com um evento para competir por cerca de dez dias por ele. Diante de suas boas atuações, estendeu o período e foi para a disputa do “título mundial”, realizado em duplas.

Experiente, Mister sabia que, como estava só momentaneamente no evento, não poderia ser campeão. Mas, seu companheiro foi mais ingênuo. Ao serem avisados do desfecho da luta encenada, seu parceiro não quis vender barato uma derrota. O argentino, àquele ponto, só queria ganhar para trabalhar. Assim, fez seu papel no primeiro round e, no ringue, pediu para ser jogado por cima das cordas em direção ao público. “Morto”, pelo rival, ele foi descansar, enquanto seu parceiro apanhou por mais três rounds.

O caso é só um dos tempos em que a trupe da luta livre viajava para cima e para baixo de ônibus e Kombi, Brasil afora. Foi num desses “rolês” que improvisou uma pessoa como motorista de ônibus. Esse homem, depois do serviço, pediu a Mister que comprasse um táxi, e ele trabalharia para o lutador. A experiência não deu muito certo, mas, anos depois, o argentino é quem acabou virando taxista.