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Treinos de 'animal', psicologia e evolução; como Dani Alves chegou à Copa

Thiago Arantes

Colaboração para o UOL, em Barcelona

07/11/2022 14h11

Classificação e Jogos

O nome de Daniel Alves foi o mais surpreendente da convocação de Tite para a Copa do Mundo do Qatar, divulgada nesta segunda-feira. Aos 39 anos, o lateral-direito fez um caminho pouco usual nos últimos meses antes de aparecer na lista final de 26 jogadores. Depois de jogar na Liga Mexicana pelo Pumas, o veterano passou as últimas semanas treinando com o time B do Barcelona.

O período de treinamentos com o clube catalão foi fundamental para a convocação, segundo a comissão técnica. "Falamos para ele que teria de melhorar. E ele disse: missão dada é missão cumprida. Fomos a Barcelona, vimos dois dias de treinos dele lá, e ele mostrou uma melhoria intensa de força e potência", explicou o preparador físico Fábio Mahseredjian.

Em entrevista ao UOL Esporte no último dia 26 de outubro Daniel Alves já mostrava que estava fazendo de tudo para chegar à Copa do Mundo. Durante duas horas, ele falou sobre o processo de preparação que tinha como objetivo levá-lo ao Qatar. "Estou treinando como um animal", definiu.

Além das atividades no Barcelona, a rotina incluía massagem, exercícios em casa e até uma câmara hiperbárica para melhorar o processo de recuperação. Foram, em média, 6 horas por dia de trabalho por dia. No tempo restante, Daniel Alves ouvia música, lia livros de psicologia - "três ou quatro por mês" - e pensava em onde queria estar no dia 18 de dezembro, data da final da Copa.

"Eu me imagino levantando o troféu, com a minha galera. Isso martela todo dia na minha cabeça. Durmo com isso e acordo com isso, durmo com isso e acordo com isso. A única forma de aproximar da meta é criar um relacionamento com ela", afirmou.


2018 dói mais que o 7 a 1.

Para entender todo o esforço que levou Daniel Alves a estar na lista de convocados de Tite é preciso voltar quatro anos no tempo. Em 2018, na Rússia, ele era o titular indiscutível da lateral-direita, mas uma lesão no joelho direito interrompeu o caminho para aquela que seria sua terceira Copa.

"Para mim, jogar em 2022 virou um desafio a partir do momento em que não pude ir para 2018. Quando eu estava pra ir, acabou acontecendo uma fatalidade que não me permitiu ir. Isso gerou um desafio. Acho que 2018 foi o pior momento da minha carreira. Porque te impossibilita de lutar. Quando você está impossibilitado de lutar, aí acabou pra você. Minha mente queria, meu coração queria, a alma queria, mas o meu corpo estava bloqueado. Aí não tem chance, acho que esse foi o pior momento, sem dúvida nenhuma", afirmou.

Para o lateral, a dor de não poder lutar foi mais intensa que a de viver a pior derrota da história do futebol brasileiro, o 7 a 1 diante da Alemanha, em 2014. "A de 2018 dói mais, com certeza. Por mais doloroso que seja o ensinamento, eu ainda prefiro o ensinamento, por mais doloroso que seja. A Copa de 2014 foi um ensinamento. Para os inteligentes foi um ensinamento."

A dor por ter ficado fora foi o combustível que moveu o veterano. Passado o período mais difícil depois da lesão que o tirou da Copa da Rússia, Daniel Alves decidiu encarar o trauma. Em vez de ficar recluso, não assistir aos jogos ou distanciar-se do clima do Mundial, ele foi até Moscou para assistir à partida contra a Sérvia, a terceira do Brasil na fase de grupos.

"Desde 2018, tenho que fazer alguma coisa a mais, para chegar no objetivo futuro. É fazer, fazer e fazer. Quando vai se aproximando mais, você aumenta mais o cuidado, a capacidade de trabalho, de dedicação, de entrega, de abdicação, de tudo o que vai entorpecer esse objetivo principal", contou.

Na Copa da Rússia, Tite promoveu um revezamento de capitães na seleção - Marcelo usou a braçadeira na estreia contra a Suíça, e os zagueiros Thiago Silva e Miranda ficaram com ela duas vezes cada. Soube-se depois que a ideia era ter Daniel Alves como capitão em uma eventual final. O objetivo de erguer a taça continua vivo a cada dia; mas ele afirma que ser capitão já não passa pela cabeça.


"Não existe o sonho do capitão Daniel Alves, não. Existe o sonho só do Daniel Alves, que é de estar lá levantando a taça no dia 18, seja o primeiro ou seja o último. Seja o número 1 ou o número 26", afirmou, dando a entender que a convocação seria um prêmio, independentemente da condição de titular.

A arte de "cortar cebola"

Diante da surpresa com a presença de Daniel Alves na convocação, uma pergunta surgiu quase de imediato: qual será o papel dele no elenco? Na conversa com o UOL Esporte, o lateral recorreu a uma metáfora culinária para explicar como vê o futebol.

"Eu sempre entrego o meu. Se você me colocar na cozinha pra cortar cebola, a cebola vai sair bem cortada. Agora, se depois o chef estraga a comida, aí não é problema meu... a cebola estava bem cortada", afirma.

A "cebola" que Daniel Alves terá de cortar no Qatar não chega a ser parte de uma receita nova. Com Tite, Daniel consolidou o que o treinador chama de laterais "construtores" -que participam mais da elaboração de jogadas pelo meio.


"O que os laterais fazem hoje eu fazia desde os tempos de Sevilla. Eu e o Marcelo transformamos a posição de lateral. De não só atacar pelos lados, mas fazer um jogo mais construtivo, mais elaborado. Nós mudamos esse conceito. Hoje todo mundo faz, mas se eu já fiz desde o Sevilla, posso voltar a fazer sem nenhum problema."

Para Daniel, rotular titulares ou reservas em uma Copa do Mundo faz pouco sentido. "Nunca vi uma equipe começar e terminar com o mesmo time". Além disso, ele afirma que em eventos de tiro curto, a experiência para lidar com os jovens da renovada seleção brasileira é um ponto em que pode colaborar.

"Eu vivi isso na Olimpíada. Naquele momento em que a galera está meio assim e você consegue colocar eles no objetivo, tirar um pouco da vaidade, do egocentrismo que todo mundo tem? uns afloram mais, outros afloram menos. Mas quando é pro bem coletivo você precisa ter bons líderes. Eu creio que a seleção tem muitos bons líderes, e acredito que sou um deles. Que traz um pouco desse equilíbrio. Apesar de parecer muito louco, eu sou muito sereno na hora das coisas. Eu tenho muitas coisas positivas ao meu favor, mais do que as negativas", disse, em outubro.

O "mago" Tite e a melhor seleção em 20 anos

A relação entre Tite e Daniel Alves é de respeito e admiração. O treinador tem uma camisa autografada do lateral em sua sala na CBF; e o jogador fala com tom de reverência do técnico, a quem se refere como "o capitão do barco" -as palavras estão na dedicatória da camisa autografada e na resposta ao ser perguntado sobre a importância do treinador.

"O capitão deste barco aqui se chama Tite. Porque o poder de extração que ele tem, eu não vi em ninguém. Extrair o melhor de cada um, conhecer, saber a força, as virtudes e defeitos de cada um das pessoas? seja do roupeiro ou do Neymar. Isso é mágico, é mágico. É magia pura. Magia pura, o cara é um mago. E começa criar um ambiente de respeito gigante que você fala "não sei se vou ganhar, mas eu já ganhei"."

O ambiente criado por Tite e a qualidade técnica da nova geração de jogadores deixam o lateral de 39 anos otimista. Daniel tinha 19 anos quando o Brasil conquistou a Copa do Mundo pela última vez, em 2002. Desde então, afirma que nunca houve um time como o atual.

"A seleção no geral, o grupo, chega num momento um dos mais equilibrados dos últimos 20 anos. Em 2002 foi o último título, e desde então é o grupo mais equilibrado que tem, em todos os perfis de jogadores. Isso não garante nada, mas chega com uma força interessante. Mas tem que saber utilizar."

Escaldado por três experiências frustrantes -duas derrotas em uma ausência-, ele afirma que o Mundial é um evento completamente diferente de qualquer outro. "Não é a performance dos jogadores nos clubes que vai dizer que você terá uma alta performance na Copa do Mundo. É totalmente diferente, eu já vivi situações de jogadores que estão no seu melhor nível e na Copa do Mundo não conseguir desenvolver o nível que o fez chegar até ali", diz.

Como exemplo, ele usa a Copa de 2010, em que a seleção brasileira acabou eliminada nas quartas de final contra a Holanda. "A gente já viveu isso de escorregar num aspecto mental e ficar fora. Se escorregar em um momento você vai pra casa rápido, porque está enfrentando o mesmo nível que você".