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Libertadores - 2022

Ex-Grêmio e Palmeiras, Arce agora repete frieza das bolas paradas na pesca

Arce, do Palmeiras -  Ernesto Rodrigues/Folhapress
Arce, do Palmeiras Imagem: Ernesto Rodrigues/Folhapress

Jeremias Wernek

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

19/04/2022 04h00

O olhar passa rápido por diferentes quadrantes e mapeia com precisão o terreno. Os olhos param, fixos em um lugar. Francisco Arce sabe. É lá, naquele centímetro. Os músculos se alinham, o corpo faz um movimento que parece simples e pronto. Aquilo que para muitos tem um quê de mágica acontece de novo. O exímio lateral direito de Grêmio e Palmeiras, bicampeão da Copa Libertadores e ídolo do Cerro Porteño e seleção paraguaia faz de novo. Dessa vez, não é uma de suas tradicionais cobranças de falta nos gramados. É nas águas do Rio Paraná, afluente do Rio Paraguai. A precisão e paciência que foram decisivas nas bolas paradas continuam afiadas na vida do agora treinador, que também as utiliza na pesca.

Aos 51 anos, Arce é o atual treinador do Cerro Porteño, mas continua na memória de todo torcedor que o viu jogando, pela facilidade de transformar uma batida na bola de quase qualquer lugar em gol.

"Desde que vi ele, o cruzamento sempre foi bom. Claro que ele foi aprimorando, mas o jeito de bater na bola sempre foi diferente", conta Catalino Rivarola, ex-zagueiro do Grêmio e colega de Arce em Porto Alegre, na seleção do Paraguai e Cerro Porteño.

Francisco Javier Arce Rolón nasceu em uma cidade há 60 quilômetros de Assunção e foi formado nas categorias de base do Cerro Porteño. Jogou os Jogos Olímpicos de 1992, em Barcelona, e era unanimidade nacional até virar notícia no Brasil. E, olha a ironia, pela boca de um conterrâneo que jogou no Internacional, mas indicou o lateral ao Grêmio.

"O Benítez [goleiro do Inter entre 78 e 83] apareceu lá no clube com jogadores para a base, eu era diretor do amador e ele falou de um jogador que jogava em três posições. Batia muito bem na bola. Na mesma hora chamei o Cacalo [Luis Carlos Silveira Martins, vice de futebol do Grêmio à época] e ele acionou o doutor Fábio [Koff, histórico presidente gremista]. O João Francisco [empresário de futebol, já falecido] trabalhava conosco, tinha muito conhecimento fora do Brasil e ajudou a levantar informações. Não demorou muito tempo a gente trouxe ele e o resto é história", conta Sérgio Vazques, atual diretor de futebol do Grêmio e contemporâneo da diretoria que investiu na chegada de Francisco Arce.

O Grêmio ouviu críticas, pela contratação de um nome desconhecido e que atuava em três posições diferentes. Foi preciso pouco tempo, entretanto, para que o negócio fosse exaltado.

"Ele não precisava ir na linha de fundo para cruzar. Era um espetáculo! Consagrou o Jardel", vibra Vazques. "O Felipão viu rápido que ele era diferente e liberava o Arce para atacar", completa.

O Grêmio tinha Danrlei, Roger, Goiano, Dinho, Carlos Miguel, Arilson, Paulo Nunes, Jardel, além de, claro, Arce. Campeão da Libertadores, campeão brasileiro. Campeão da Recopa Sul-Americana, da Copa do Brasil, bi do Gauchão. Eleito melhor lateral do continente.

"Eu cheguei ao Brasil desconhecido, como aposta do clube, do treinador. Ganhamos o primeiro título naquele semestre ainda e isso foi importante. Com certeza a Libertadores de 1995 foi um marco na minha carreira. Tem um antes e depois daquele título", resumiu Arce em entrevista ao canal La Pizarra Del DT no YouTube.

Os dias felizes em Porto Alegre contavam com uma pequena colônia paraguaia.

"Nós dividíamos quarto na concentração, andávamos sempre juntos. Tomando aquele bom tererê, para cima e para baixo (risos). Quando a gente tinha chance, naqueles dias de folga assim, saíamos para jantar em Porto Alegre. A gente adorava uma galeteria na zona norte ou uma churrascaria perto do Guaíba. Tinha o Gamarra, Enciso [ambos jogadores do Inter] também. Havia esse contato entre os paraguaios, com certeza", conta Rivarola.

Arce - Fernando Santos/Folha Imagem - Fernando Santos/Folha Imagem
Arce pelo Palmeiras em 2002
Imagem: Fernando Santos/Folha Imagem

O quarteto paraguaio em terras brasileiras consagrou uma pequena tradição: pescar.

"A gente adora pescar! Com as férias, íamos todos para o Rio. A gente gosta da pescaria e de cozinhar o peixe logo depois! Em Porto Alegre, a gente ia em um lugar, perto da cidade, onde também dava para pescar. Sempre pescamos e até hoje a gente se reúne, mas com menos frequência", diz o ex-zagueiro e parceiro de Arce.

O sucesso no fim do Brasil chamou atenção do Palmeiras, endinheirado com os investimentos da Parmalat. Em 1998, Arce chegou a São Paulo ao lado de Luiz Felipe Scolari, treinador com quem trabalhou em Porto Alegre.

"Ele foi, mas no fundo queria ter ficado", brinca um amigo próximo. "Mas extremamente profissional como é, foi e conquistou tudo de novo", completa.

Foram cinco títulos no Palmeiras: Copa do Brasil, Copa Mercosul, Libertadores, Rio-São Paulo e Copa dos Campeões. Unindo as temporadas por Grêmio e Palmeiras, foram sete prêmios como melhor lateral da América do Sul, em votação do jornal El País, do Uruguai.

No meio das alegrias, houve também encontros incomuns, como o dia em que Arce e Gamarra se cruzaram em meio à confusão generalizada de um Corinthians e Palmeiras.

"Em 15 dias jogamos quatro partidas, quatro jogos Corinthians e Palmeiras. Jogamos quartas de final da Libertadores. Jogamos e perdemos por 2 a 0. No domingo, jogamos a final do Paulista e ganhamos por 3 a 0. Dias depois, voltamos a jogar pela Libertadores e perdemos nos pênaltis [depois de vence no tempo normal]. E domingo tinha final outra vez. Lembro que falamos sobre jogar o jogo, mas se preciso for também armar uma confusão", recordou Gamarra, em entrevista à Ñanduti TV, do Paraguai.

"Edilson fez as embaixadinhas, Junior foi para cima e depois veio Paulo [Nunes]. Começou uma confusão enorme! E uma hora, eu corri [para o meio da confusão] e dei de cara com Chiqui [Arce]. Nos olhamos, paramos uns segundos e cada um saiu para um lado. Eu para cá e ele para lá (risos)", completou o ex-zagueiro.

Em 2003, Arce foi jogar no Gamba Osaka, do Japão, e no ano seguinte voltou ao Paraguai para vestir a camisa do Libertad. A aposentadoria chegou em 2006, pelo 12 de Octubre. O jogo final, a despedida do futebol, aconteceu em Paraguarí, cidade natal do lateral. Dois anos mais tarde, o ex-jogador virou treinador e iniciou a carreira mantida até os dias atuais. Com a manutenção do hobby.

"Já visitei ele umas duas ou três vezes, lá no Paraguai. E sempre fui recebido muito bem. O Arce é metido a pescador, né? Serviu os peixes que ele mesmo pescou! Ele é um grande cara", elogia Sérgio Vazques.

Em 2011, em visita a Porto Alegre, Arce entrou no vestiário do estádio Olímpico e viajou no tempo. Também brincou ao ver as mudanças do local que frequentou diariamente.

"Isso aqui não tinha na minha época! E nem aquilo ali, nossa! Tudo está diferente", falou ao guia improvisado pelo clube para atualizar o ídolo das instalações. "Mas na minha época tinha time. Que time!", brincou em tom descontraído.

Naquela temporada, o Grêmio lutou contra o rebaixamento no Campeonato Brasileiro.

A vida como treinador levou Arce à seleção paraguaia, mas por pouco tempo. Depois da experiência no time nacional, o ex-lateral trilhou caminho por clubes menores até chegar outra vez ao Cerro Porteño. A segunda passagem começou em 2020, sete anos após a primeira vez no cargo do time onde entrou para o futebol.

Em 2021, Arce perdeu o filho Alexsandro Javier, de 20 anos, após um acidente de carro. A morte fez com que o jogo do Cerro Porteño com o Fluminense fosse adiado. A comoção foi enorme no Paraguai e também no Brasil, entre amigos e ex-colegas de vestiário.

O ex-meia Alex, atualmente treinador da base do São Paulo, revelou ter sido homenageado pelo amigo: o menino que nasceu prematuro foi batizado com o nome do colega de time da época de Palmeiras, que também foi convidado a ser padrinho.

"Dividíamos vestiário e foi uma das pessoas que mais me ensinou em futebol", escreveu Alex na postagem em homenagem a Arce e à família logo após a morte do caçula.

Hoje, se você quiser recordar os lances de Arce, basta abrir a internet. Se quiser encontrar pessoalmente o ex-lateral, basta olhar às margens do Rio Paraguai ou à beira do campo no campeonato paraguaio e na Libertadores. Lá vai encontrar, agora como técnico, o pescador preciso e o lateral paciente que dominou o continente.