Libra x LFF: entenda como as ligas do Brasil chegaram a um beco sem saída
Sob o pretexto de criarem uma Liga, clubes brasileiros se organizaram em torno de dois blocos comerciais. A Libra surgiu em maio de 2022 como entidade destinada a congregá-los em torno da criação de uma liga profissional de futebol no Brasil.
Como ocorre em todos os países que possuem ligas com essa característica, seria uma entidade privada, desvinculada da entidade reguladora local (governing body). Assim, estaria vinculada a obrigações específicas em relação à CBF, mas livre para dentro desses parâmetros organizar e explorar comercialmente os campeonatos brasileiros de futebol. Como, por exemplo, nos casos Premiere League x FA, ou La Liga x RFEF.
Foram seus fundadores Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Santos, Red Bull Bragantino, Ponte Preta e Cruzeiro. Outros clubes optaram por não assinar. Naquele momento o objetivo seria, com a ajuda de um parceiro estratégico, buscar investimentos que seriam destinados à formatação do produto.
Temas como calendário, fair play financeiro, qualidade dos estádios/gramados, dentre outros, estavam em debate. Entretanto, a modelagem de venda de direitos de transmissão rapidamente tornou-se a grande protagonista na pauta.
Quando a discussão de longo prazo dá lugar ao curto, a qualidade do produto passa a ser menos importante que como, e por quanto será vendido.
Apenas um mês depois, outros 28 clubes das séries A e B criaram a Liga de Futebol Forte - LFF./ Curiosamente na sede da CBF. Nesse momento questões de ordem estratégica e estrutural, como forma e organização do torneio (arbitragem, licenciamento, estádios, calendário, etc.) deixaram a pauta, para nunca mais voltar. Na prática, não era mais um debate entre ideias e modelos para o produto campeonato brasileiro, mas meramente uma disputa entre dois blocos de comercialização de direitos de TV.
Esse é um ponto bastante importante, já que todos os cases de sucesso de reposicionamento comercial de ligas de futebol no mundo começam não pela sua lógica de venda de direitos, mas pela formatação do produto em si. Foi assim com a UEFA Champions League (UCL), e com a English Premiere League (EPL). Antes de se debater a forma de vender, essas duas competições passaram por uma completa reformulação em termos comerciais e técnicos. Identidade visual, posicionamento de marca, linguagem e estratégia de comunicação, protocolo de jogo, regras de licenciamento, calendário e outros aspectos foram totalmente modificados ou criados na tentativa de se desenvolver um produto de excelência.
Só então, com o novo produto desenhado, a questão de sua comercialização assumiu o centro das discussões. O que dá origem a uma decisão desastrosa, sem volta. Que cobrará um preço altíssimo de quem mirou o jantar, sem pensar no café do dia seguinte.
Seguiu-se um longo debate entre as duas entidades, que se estendeu até meados de 2023 quando os clubes da LFF começaram a receber adiantamentos de vendas futuras de direitos, por parte de seu investidor. E aqui é importante se ressaltar o papel muito relevante de consultores e investidores em todo esse processo. Cada grupo se organizou em torno de seus próprios parceiros, e não há nada errado nisso. Entretanto, é importante lembrar que investidores e consultores (com honorários vinculados a um determinado cenário) nem sempre possuem no longo prazo os mesmos objetivos de quem os contrata. O conceito de sucesso em uma operação pode ser diferente ou mesmo divergente entre as partes, e isso também é normal no mercado. Caberia aos clubes, ter a capacidade de entender eventuais conflitos de interesse na hora de optar por estratégias propostas por seus respectivos parceiros. Aparentemente, não foi o caso.
Como resultado, os clubes da LFF optaram por uma estratégia de venda de 20% de todos os seus direitos comerciais relacionados à uma eventual liga. Não apenas os direitos de transmissão, mas todos os direitos de marketing, de propriedades que inclusive venham a ser criadas nesse horizonte futuro de meio século.
Seria como se esses clubes, no início da década de 70 antes do surgimento da venda dos direitos de transmissão por TV, tivessem vendido por um valor simbólico 20% de todas as suas receitas de TV, sem ter a menor ideia de quanto viriam a valer no futuro. Um verdadeiro desastre comercial.
Mas como sempre, para entender o presente (e futuro) convém olhar para o passado.
Até o início da década de 70 comercialmente o futebol era muito diferente. A começar pelo fato de que esse contexto era idêntico tanto no futebol europeu, quanto no sul-americano. Não por acaso os clubes da América do Sul conseguiam manter seus atletas em atividade no continente, e frequentemente em embates com clubes europeus chegavam tecnicamente em vantagem.
Naquela época, as receitas estavam limitadas a 2 únicas fontes. Havia a venda de direitos econômicos de atletas (em patamar de preço muito inferior ao atual). Como também as receitas hoje denominadas matchday (de estádio), mas em um escopo bem menos amplo já que estavam limitadas aos ingressos comuns, sem espaços VIP (hospitality) e outras formas de exploração comercial (concessões de alimentação etc.) e de marketing. Basicamente cada clube contava com o que arrecadava com sua bilheteria de domingo.
Isso significa uma mudança radical em relação ao que hoje existe. Porque, independente de quantos torcedores cada time possuísse, sua arrecadação estava limitada à capacidade do estádio onde jogava e ao preço do ingresso que conseguia cobrar.
Assim, em termos de faturamento era "inútil" ter milhões de torcedores já que seu estádio não podia comportar mais que 100 mil, ou mesmo 200 mil como no caso do Maracanã em seus tempos de "maior do mundo". O preço do ingresso (e outras receitas) também estava limitado pelos estádios despreparados para receber um público com maior poder aquisitivo, ou patrocinadores.
A TV transforma os espectadores do estádio, de milhares em milhões.
Claro que na época os custos também eram muito menores. Era a época em que o Flamengo podia contratar um jogador de seleção brasileira como Carpegiani, e pagar com a soma de algumas rendas de Maracanã cheio.
Porém, a partir da década de 70 tudo começa a mudar com a chegada da TV. Pela primeira vez o alcance direto da imagem das partidas se expande para além do público no estádio, e passa a chegar a milhões de pessoas. Essa mudança, entretanto, foi bastante lenta. Primeiro porque as TV se recusavam a pagar pelas transmissões, alegando fazer um "favor" aos clubes. Foi preciso uma atitude intempestiva do então presidente do Flamengo Márcio Braga, em 1977, proibindo a entrada de câmeras para a transmissão de TV, até que o clube fosse remunerado por esse "novo direito". A situação, que parece absurda hoje, não era na época o que levou o Flamengo por sua iniciativa a ser classificado, inclusive por outros clubes, como "egoísta" e que "só pensava em si mesmo". Como se costuma dizer, a história se repete como farsa.
Entretanto, a vitória conquistada pelo Flamengo (estendida a todos os outros clubes) que viu a TV aceitar pagar pela transmissão de seus jogos, não se traduziu em uma revolução econômica instantaneamente. Isso porque os valores inicialmente pagos eram modestos se comparados ao modelo atual. O modelo no Brasil e no mundo era de TV aberta, dependente inteiramente de um mercado anunciante ainda insipiente. Na Europa, o surgimento de um novo modelo de liga muda o cenário mundial do futebol de clubes para sempre.
Foram necessários 20 anos, e uma ampliação a nível mundial no modelo de negócio de TV (da aberta para Pay TV), para que esse quadro mudasse radicalmente. O crescimento da chamada TV por assinatura, e a quebra da exclusividade de transmissão dos canais estatais na Europa (BBC, RAI, etc.), permitiu ao futebol europeu de clubes dar um enorme salto comercial na década de 90, se desgarrando economicamente do sul-americano de forma definitiva até hoje. De competições com potencial econômico limitado, a partir de 1992 a Champions League e a Premiere League começam uma fase de crescimento agressivo em termos de comercialização de direitos. Isso levaria eventualmente ao inimaginável, superarem em termos quadrienais em mais de 2 vezes os valores dos direitos da Copa do Mundo Fifa, até então soberana absoluta no mundo do futebol.
Esse movimento, com atraso de mais de uma década, também aconteceu no Brasil. Entretanto, a manutenção da organização da liga sob responsabilidade de uma entidade política, a confederação local, manteve inevitavelmente a competição limitada por uma lógica também política.
Mesmo com essa limitação, no início do século XXI os clubes brasileiros além da receita já então relevantes de transmissão, agora com seu alcance bastante ampliado contavam com receitas comerciais importantes na forma de patrocínios. Mesmo assim, graças à penetração e interatividade limitada do próprio modelo da TV, a capacidade dos clubes de ganharem com seus milhões de torcedores, a chamada monetização, ainda era pequena.
Copa do Mundo FIFA x Champions League x Premiere League.
Evolução Anualizada da Venda dos Direitos de Broadcasting (em ? milhões).
E a internet transforma os milhões da TV, em muito mais
Então, no início do século XXI, surge uma nova forma de mídia que teria um impacto tão ou mais relevante que a própria TV. O aparecimento da internet muda radicalmente a forma de se consumir informação. Uma nova mídia que empoderou os produtores de conteúdo, quebrando o monopólio dos meios de comunicação tradicional. Além disso, foi responsável pela introdução de um canal de interatividade entre esse produtor e seu consumidor, diferente da via de mão única da TV tradicional. Assim como na introdução da Pay TV, as mudanças aconteceram paulatinamente, mas de forma inevitável e definitiva.
Para o futebol a internet significou (e ainda significará) um novo degrau para a possibilidade de monetizar seu torcedor. Assim como a TV levou o jogo de milhares para milhões, a internet levou não apenas o jogo, mas todos os conteúdos ligados aos clubes, a seus torcedores mais distantes. Qualquer um com um smartphone não importa onde esteja, é consumidor de conteúdo, e de forma interativa. Para o Flamengo, por exemplo, potencialmente os milhões passaram para dezenas de milhões. ? Essa segunda revolução ainda em andamento, ao permitir aprofundar a monetização (ainda que indiretamente) dos torcedores, abriu espaço para um distanciamento nas receitas comerciais entre clubes de potencial de mercado diferentes. Esse distanciamento, em alguns casos aparente, poucas vezes é compreendido. É mais fácil simplesmente culpar a velha TV.
A Evolução do Direitos Comerciais dos Clube Brasileiros,
Seu Alcance e Potencial de Monetização da Base de Torcedores.
Mais fontes de receitas, mais opções de estratégia comercial.
Agora que entendemos o caminho trilhado para chegar até aqui, fica mais fácil entender não apenas o que acontece no presente, mas as perspectivas para o futuro. Ao contrário do início da década de 70, hoje os clubes têm mais opções de receita do que apenas seu estádio e seus jogadores. Hoje as receitas de TV têm um papel muito importante. Mas são as receitas comerciais, em grande parte alavancadas por esse novo boom proporcionado pela internet, aquelas que mais representam potencial de crescimento no futuro.
Considerando que as receitas de TV são fruto de negociações coletivas, onde ninguém individualmente tem controle total sobre como evoluem, pode-se dizer que os clubes hoje teriam duas opções de estratégia comercial.
A primeira seria explorar seus direitos comerciais, tanto no caso de marca (patrocínios, licenciamentos, conteúdo etc.), quanto de estádio (ingressos, hospitality, sócio torcedor, concessões comerciais, naming rights etc.). Isso pressupõe, entretanto, ter um mercado consumidor suficientemente amplo para ser monetizado.
Para quem não tem como apostar apenas na primeira estratégia, a segunda alternativa seriam as receitas com a venda de direitos econômicos de atletas. Ou seja, ou formar barato e vender caro, ou ter estratégia de captação eficiente para comprar barato e vender caro.
Estratégias Competitivas de Negócios no Futebol e Seus Riscos.
O futuro sendo escrito hoje.
Essa opção fica clara através da surpreendente decisão de vender 20% de seus direitos comerciais vinculados ao campeonato, por valor irrisório. O recado está dado por esses clubes que sinalizam uma total falta de confiança em suas marcas centenárias. Marcas que se tratadas com cuidado e prioridade, poderiam sem dúvida a longo prazo produzir resultados relevantes.
Por último, a venda dessa participação de 20% ainda mostra uma visão extremamente limitada do futuro. Nos últimos 30 anos passamos por duas grandes revoluções comerciais no futebol, graças à introdução da Pay Tv e da Internet. O que esperar dos próximos anos? Web 3.0, realidades aumentada e virtual, AI, fora tudo que ainda sequer foi concebido, tornam muito prováveis novas revoluções no modelo comercial do futebol.
Revoluções inclusive, que podem vir a tornar a própria TV e seu modelo de transmissão em algo obsoleto. Ao analisar o passado dos direitos comerciais no futebol brasileiro, podemos entender melhor os conflitos do presente. E mais que isso, antever o que poderá acontecer em seu futuro.
Na vida as decisões do presente constroem a realidade do futuro. Para os clubes da LFF essa não é uma boa notícia.
* especialista em gestão e marketing esportivo.
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