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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tirar Campos Neto do BC não é apenas legítimo: é também constitucional

Roberto Campos Neto, presidente do BC, participou nesta quarta (5) de evento do Bradesco BBI - Reprodução
Roberto Campos Neto, presidente do BC, participou nesta quarta (5) de evento do Bradesco BBI Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/05/2023 14h11

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O artigo 192 da Constituição diz que o sistema financeiro nacional deve ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade.

É um artigo bem simples que bastaria para abrir o debate sobre a permanência de Campos Neto e de suas políticas monetárias à frente do BC para além de regras estabelecidas quando decretada a autonomia do Banco Central.

Mas talvez devamos aprofundar o tema para que não restem dúvidas.

O mesmo artigo 192, ao tratar das leis complementares que regulam o sistema financeiro, continha o seguinte parágrafo quando a Constituição foi aprovada:

"As taxas de juros reais não poderão ser superiores a 12% ao ano. A cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura."

O parágrafo foi retirado anos depois de sua aprovação graças ao empenho do então parlamentar José Serra.

Os bancos agradeceram e a gente, por conta desse acordo de cavalheiros, paga juros de mais de 100% no cheque especial e acima de 400% no cartão de crédito.

Mas, para não nos aterrorizarem, falam sempre em taxa mensal: 5% ao mês, 6% ao mês. É assim que o gerente do seu banco te oferece um empréstimo.

Juros de 6% ao mês são juros de 100% ao ano.

Notem que o parágrafo que foi retirado do artigo 192 e que criminalizava a usura (hoje amplamente praticada) falava de uma taxa de juros que seria 12% ao ano, e não ao mês.

Falar de taxa de juro mensal já é, em si, uma deformidade do nosso sistema.

Mas quem sou eu para palpitar sobre temas tão específicos, não é mesmo?

Chamemos então para o debate alguém que é gabaritado do começo ao fim. Seus livros, seus artigos, suas palestras e suas entrevistas decifram em minúcias e com clareza impressionante o que é esse negócio chamado economia.

Ladislau Dowbor nasceu na França mas é cidadão brasileiro e é economista renomado internacionalmente.

Trabalhou na ONU e em dezenas de países de todos os aspectos econômicos mundiais, dos mais periféricos aos mais centrais.

Dowbor também professor da PUC de São Paulo.

A Selic atual, superior a 13% anual, é, para Dowbor, um dreno financeiro que transfere nossos impostos a grupos financeiros e a uma parcela mínima de pessoas.

"O nosso problema não é o tamanho da dívida pública", diz o professor pedindo que antes de falarmos de dívida pública busquemos entender o que a gerou e por que ela aumenta tanto. "Não foi construção de estradas, hospitais, creches que gerou a dívida", diz Dowbor.

Apenas para registro, a dívida pública está na ordem de 7,5 trilhões de reais e mais de 50% dela está diretamente atrelada à Selic; quanto maior a Selic, maior o gasto da União com os juros da dívida pública.

Em 2022, a União despendeu 800 bilhões com a dívida pública em nome das taxas de juros praticadas pelo BC.

Se, como disse Cid Gomes na sabatina de Campos Neto, o Brasil praticasse a taxa de juros da meca do Capitalismo mundial, os Estados Unidos, nós teríamos despendido 200 bilhões com a dívida pública - e não 800 bilhões. A taxa de juros praticada pelo Federal Reserve, o BC estadunidense, é de 5% ao ano.

Temos aí uma régua para medir tamanho do dreno a que se refere Dowbor: da ordem de 500 bilhões por ano.

Quantos Bolsas Família cabem aí? Quantas USP? Quantas creches? Quantas escolas técnicas? Quantos postinhos do SUS?

Daria para fazer, como sugeriu Cid Gomes, o maior programa nacional de habitação da história, acabando de uma vez com o déficit habitacional, acabando com pessoas em situação de rua.

Não basta para que constatemos que o artigo 192 da Constituição está sendo desrespeitado?

Mas há outras perguntas legítimas: para onde vai esse dreno?

Para o rentismo, para os ricos, para os muito ricos, para os milionários e bilionários.

Vai para as mãos de no máximo 5 milhões de brasileiros. Cinco milhões num país de 200 milhões.

Dinheiro que deixa de ser usado socialmente para ser doado aos muito ricos.

Outra vez: não bastaria isso para tirar Campos Neto de lá e colocar em seu lugar alguém que promovesse "o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade" como manda a constituição?

O dreno da dívida pública a que Dowbor se refere vai diretamente para mãos improdutivas.

Não acontece nada com esse dinheiro a não ser uma viagem de volta ao sistema financeiro para criar mais dinheiro.

O dinheiro que se deixou de pagar para saúde, educação etc através do chamado teto de gastos foi transferido para a Faria Lima, ensina Dowbor.

O Banco Central deveria agir para equilibrar a política monetária e não usar ferramentas para drenar recursos públicos para fins improdutivos.

Apenas essas constatações já dariam amparo constitucional para tirar Campos Neto da função no BC.

Mas a situação piora quando Campos Neto explica que a taxa de mais de 13% ao ano é necessária para conter a inflação.

Para Dowbor, em termos econômicos não há debate sobre a desculpa dada a respeito da taxa de juros de 13,75% ser usada para combater a inflação: é uma falácia que não se sustenta por dois segundos. É apenas uma falsa narrativa que visa justificar o injustificável.

"A narrativa da inflação é um pretexto para se apropriar de dinheiro público", diz Dowbor se apressando a explicar que não é apenas ele que pensa assim e que a posição é consenso entre economistas sérios do Brasil e do mundo.

É, como estamos vendo, uma opção política, não tem nada de economia a escolha por uma taxa de juros desse tamanho.

Trata-se, portanto, de apropriação indébita, diz Dowbor.

Não basta para que vejamos como o artigo 192 da Constituição está sendo desrespeitado e mudemos o presidente do BC?

O sistema financeiro deve defender os interesses da comunidade e o BC não está agindo assim. Pelo contrário.

Temos 80% das famílias atoladas em dívidas no Brasil. Uma taxa de juros como a praticada pelo BC aprofunda esse cenário e atola as empresas, que não têm para quem vender ou por que produzir já que não há quem possa comprar.

Nesse Brasil de Campos Neto o que gera dinheiro é dinheiro e o pobre que se dane.

A taxa de juros praticada, a maior do mundo, trava toda a cadeia produtiva, desde o empresário até o consumidor passando pelo estado que deixa de receber impostos.

Na China, a taxa de juros é de 4% ao ano. No Canadá é perto disso. Nos Estados Unidos, como vimos, idem.

Vamos lembrar antes de encerrar esse texto que lucros e dividendos não são taxados no Brasil (apenas Brasil e Estônia não taxam), outra das maravilhas deixadas por FHC para o gozo dos muito ricos.

Querem mais detalhes sobre o dreno do BC que está esfolando a economia brasileira? Está tudo no site do professor Dowbor. Seus livros são muitos, são fáceis e são gratuitos: Dowbor.org.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi informado, a Selic está em pouco mais de 13% ao ano, e não ao mês. O erro foi corrigido.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL