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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que o feito de Ana Thaís foi o mais histórico para as mulheres até hoje

Ana Thaís Matos cobra ações de clubes após manifestações em caso Mari Ferrer - Reprodução/SporTV
Ana Thaís Matos cobra ações de clubes após manifestações em caso Mari Ferrer Imagem: Reprodução/SporTV

Colunista do UOL

25/11/2022 11h12

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Com a estreia do Brasil no Qatar testemunhamos mais uma conquista feminina: Ana Thaís Matos comentando em TV aberta, para milhões de pessoas.

A excelente Renata Mendonça já tinha, dias antes, feito sua estreia como comentarista em canal fechado.

Natalia Lara e Renata Silveira, narradoras, idem.

Então por que destacar o feito de Ana Thaís? Explico.

Narrar um jogo é diferente - claro - de comentar um jogo.

A narradora tem a preferência da palavra, o microfone é dela e ela distribui as bolas na cabine chamando comentaristas e a (infernal) central do apito quando acha que deve. O ritmo é ela quem dá.

Já é um feito imenso e comovente.

Mas nos comentários a mulher fica espremida no clube do bolinha.

Por mais simpáticos que sejam os colegas de cabine à presença dela ali, a preferência automática da fala nunca é dela.

O que acontece muito é a mulher falar e os colegas silenciarem.

No jogo de estreia do Brasil, Ana, por exemplo, já tinha chamado a atenção para as rebatidas do goleiro sérvio.

Ela dizia que o Brasil poderia tentar aproveitar as bolas espalmadas pra jogo.

Na cabine, silêncio. Nem Galvão nem os comentaristas repercutiram o que Ana disse.

É sempre muito diferente da opinião do comentarista masculino, que normalmente é reverberada entre eles.

Já a opinião feminina cai na vala do "hum-hum. Segue o jogo". Não se demonstra tanto interesse pelo que dizem as mulheres.

Mas eis que o primeiro gol do Brasil sai de uma bola rebatida pelo goleiro - como Ana havia previsto.

Gol de Ana Thais.

Ela mesma fez seu RP, coisa que homens fazem a todo o instante: Como eu dizia, aconteceu o que estávamos prevendo.

Se Ana fosse um homem provavelmente o narrador diria: "como vinha alertando [Caio, Junior, Roger etc] o goleiro estava soltando umas bolas"

Mas com Ana não houve repercussão. Silêncio na cabine.

Na sequência, Ana voltou a chamar a atenção para uma outra bola rebatida pelo goleiro sérvio. Aí foi demais para o Galvão, que disse: pera lá, essa era uma defesa difícil, Ana!

Não lembro de Galvão ter falado assim com algum colega de cabine. Soou estranho. Soou como uma correção, uma orientação.

O que ele poderia (deveria) ter feito: repercutido o assunto. Mesmo não concordando, devolvendo a bola para que ela elaborasse. Como sempre foi feito entre eles.

E, ainda pior: Ana estava certa sobre as bolas rebatidas pelo goleiro. Mas Galvão optou por fazer seu pacto macabro de masculinidade com o goleiro sérvio.

Quem entende a linguagem do machismo entendeu perfeitamente o que estava sendo dito e o que estava sendo silenciado dentro da cabine.

Talvez uma pessoa que não tenha a carcaça moral de Ana ficasse um tanto tímida e abalada. Mas ela não ficou e seguiu comentando firme.

Essa firmeza é fundamental. Em casa, as crianças estão registrando os comentários e também a firmeza.

Quem está prestando atenção entende como, nesse contexto, a presença de uma mulher ainda incomoda. O lugar não é nosso. Somos as invasoras.

Antes de escrever esse texto falei com outras mulheres e com amigos sinceros daqueles que gostam de futebol apenas nas Copas. Elas e eles viram o jogo e, pela primeira vez, escutaram uma mulher entre os homens nos comentários.

Todos ficaram com a mesma impressão que eu. O orgulho se misturou à indignação para algumas das mulheres com quem falei.

São muitas as conquistas femininas nessa cobertura da Copa, mas falta um chão para que não sejamos tratadas nem com desdém nem com paternalismos.

Para que possamos ser criticadas por erros e elogiadas por acertos sem que nosso gênero tenha um papel determinante na crítica ou no elogio.

Estamos todos aprendendo e caminhando juntos.

Há aliados importantes. Há aliados apaixonados, dispostos a falar e se misturar à luta sabendo exatamente a importância dessa luta que, ao final, terá libertado a todos da violência do machismo que mata mulheres e esvazia homens de suas possíveis totalidades.

Chegaremos lá. Por causa das Renatas, das Natalias, das Anas.

Em casa, as crianças estão atentas e absorvendo. É assim que a roda gira.