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Fábio Seixas

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Criptomoeda é o novo cigarro da F1?

Sebastian Vettel, da Aston Martin, que correu em Paul Ricard sem a marca da Crypto.com - Aston Martin
Sebastian Vettel, da Aston Martin, que correu em Paul Ricard sem a marca da Crypto.com Imagem: Aston Martin

Colunista do UOL

27/07/2022 11h43

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Houve um tempo em que os jornais brasileiros publicavam cadernos especiais sobre F1 todo início de ano. Eram páginas e páginas explicando regras, apresentando pilotos e equipes, entrevistando "nossos ídolos" e "nossas promessas", falando até de categorias de base.

Na Folha, participei de vários. E lembro especialmente do caderno que fizemos em 1998. Pela correria de última hora e porque o tema teve impacto no esporte pelos anos seguintes.

Estava tudo planejado. O mote do caderno seriam as mudanças nas regras para "melhorar o espetáculo" (soa familiar?), mas tudo mudou no dia do fechamento, véspera da publicação. Sob forte pressão da União Europeia, a FIA anunciou planos para banir o patrocínio de marcas de cigarro em seus campeonatos dali a quatro anos. Foi uma bomba.

Não tinha jeito. Precisávamos redesenhar o caderno, jogar textos fora, entender o impacto daquilo, mudar a capa, escolher novas fotos, escrever quase tudo de novo. Foi o que fizemos.

No dia seguinte, 6 de março, a sexta-feira de treinos livres em Melbourne, chegava às bancas de todo o Brasil o caderno "Grid 98". É este da foto abaixo, exemplar guardado pela mãe do blogueiro e acondicionado cuidadosamente numa pasta por todos esses anos.

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Capa do caderno "Grid 98", publicado pela Folha antes da temporada da F1 de 1998
Imagem: Reprodução

"O patrocínio vai virar fumaça?", perguntava o título.

O texto principal, modéstia à parte, era uma aula de história do automobilismo. Lembrava que foi uma lei britânica de 30 anos antes que abriu caminho para a invasão tabagista na F1.

"Salas esfumaçadas, cinzeiros repletos de bitucas queimadas até o fim. Há 30 anos, fumar era 'cool'.

O Brasil importava marcas norte-americanas. Cigarros sem filtro eram a opção para quem preferia algo mais forte, mais concentrado.

Na F-1, o cabeludo Graham Hill, pai de Damon, conquistava seu segundo Mundial, pilotando um Lotus. O carro abria a era do patrocínio tabagista no automobilismo.

O Gold Leaf Team Lotus surgiu de uma necessidade. A John Player and Sons, fabricante da marca Gold Leaf, enxergou na F-1 uma possibilidade de escapar do inevitável: as restrições à publicidade de tabaco, que então começavam.

No início de 1968, o governo britânico baixou lei proibindo a veiculação de propagandas de cigarro na TV. O raciocínio da John Players foi rápido: patrocinando um time da F-1, faria sua propaganda, escapando das restrições.

De quebra, associaria sua imagem a um esporte que tem como bases para seu sucesso a velocidade e a ideia de superação."

Demorou muito mais do que quatro anos. O dobro, na verdade. O patrocínio de marcas de cigarro só foi banido em 2006. Mas, após aquele aviso da FIA, as equipes já começaram a se virar para explorar novos mercados, buscar alternativas, encontrar dinheiro novo.

Montadoras de automóveis e empresas de tecnologia foram a tábua de salvação nas primeiras décadas do século. E, nos últimos anos, chegaram os criptoativos, razão para toda essa viagem no tempo. Porque as semelhanças com o tabaco são muitas.

O produto é controverso, o dinheiro jorra e a F1 foi escolhida como a plataforma de marketing perfeita. Hoje, oito das dez equipes da categoria têm algum patrocínio do setor _as exceções são Williams e Haas, por enquanto.

Duas equipes chegam a carregar marcas diferentes de criptoativos. A Red Bull exibe ByBit e Tezos, também na McLaren. A Alfa Romeo tem Vauld e Floki.

São criptomoedas, plataformas de compra e venda, tokens, carteiras virtuais...

E não são apenas as equipes. O estreante GP de Miami, que reuniu 243 mil torcedores em três dias de atividade, em maio, vendeu os "naming rights" para a Crypto.com, que comercializa criptomoedas e NFTs. Desde o ano passado, a mesma empresa é parceira da Liberty Media.

Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas a mais nova semelhança com o cigarro é que, pouco a pouco, essas empresas também passam a enfrentar resistências em alguns países.

Aconteceu na França, no último fim de semana.

Várias das marcas presentes na F1 ainda não têm aprovação da agência local de regulação do mercado financeiro. Não podem fazer publicidade, portanto. Para evitar problemas, preferiram não aparecer em Paul Ricard. Outras resolveram arriscar, mas levaram seus advogados para o circuito.

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Max Verstappen comemora vitória na França; a Red Bull resolveu manter a marca ByBit no carro no fim de semana
Imagem: Mark Thompson/Getty Images

O ponto é que esse cenário vai se tornar mais comum daqui pra frente.

No começo do mês, a União Europeia fechou um acordo provisório para regular criptoativos e provedores de serviços em seus 27 países membros. Foram criadas regras para coibir a lavagem de dinheiro e para proteger o consumidor, o que inclui limites à publicidade.

Na Espanha, por exemplo, empresas do setor não podem contratar influenciadores. Do outro lado do Atlântico, nos EUA, celebridades como Kim Kardashian e Floyd Mayweather estão sendo processados por promoverem uma criptomoeda que derreteu no ano passado.

"A torneira tem data para fechar", escrevemos naquele caderno da Folha.

Ainda não chegamos a esse ponto como o novo cigarro da F1. Mas que bate um déjà-vu, bate.