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Márcio Chagas: A triste história do neguinho que venceu no futebol

Manifestante levanta o punho símbolo do movimento "black power" em Los Angeles em protesto contra o racismo - br-photo/Getty Images
Manifestante levanta o punho símbolo do movimento "black power" em Los Angeles em protesto contra o racismo Imagem: br-photo/Getty Images
Márcio Chagas

11/03/2020 04h00

- Márcio, explica uma coisa para a gente?

Pediu Seu Anibal, meu vizinho de bairro, eleitor convicto dos bons costumes, quando eu passava em frente ao condomínio Brazilian Tower.

Tive que parar.

Seu Anibal continuou:

- O Moreno disse que o filho dele vai faltar o peneirão porque não tem dinheiro para pagar as passagens de ônibus.

Moreno é o porteiro negro retinto que trabalha no prédio onde Anibal mora.

- Tchê, mas o clube não cuida disso? Futebol é de preto. O clube tem que ajudar a gurizada a jogar.

Eu estava atrasado, e para entrar nessa conversa seria preciso usar a metáfora da chegada do Navio Negreiro no futebol. Desanimei. Mas vou explicar meu ponto de vista sobre este assunto a vocês que me leem.

Os Navios Negreiros, que trouxeram os negros escravizados em seus porões para a América, não são uma comparação tão absurda em relação ao tratamento que a população negra recebe no Brasil atualmente. E, no futebol, a marca da lembrança escravagista destas embarcações está diluída no racismo durante os processos seletivos.

Todos os anos acontecem as competições de futebol para as categorias de base. Jovens de dez a vinte anos sonham com o estrelato no futebol e ingressam neste processo seletivo. Os aspirantes a atletas sofrem as avaliações nos chamados "peneirões". Como o próprio nome sugere, é na peneira do garimpo que são selecionadas as joias de alto rendimento, e são pelos furos que escoam os julgados por seu baixo resultado.

Sei que muitos estão pensando que isso faz parte de qualquer processo competitivo em uma sociedade, mas vamos ponderar algumas questões levando em consideração os direitos das crianças e dos jovens assegurados por lei.

Racismo - YURI KADOBNOV / AFP - YURI KADOBNOV / AFP
Imagem: YURI KADOBNOV / AFP

Por que as crianças de famílias ricas que almejam profissões de alta remuneração e podem frequentar universidades públicas e cursos no exterior não se submetem (não por muito tempo) ao tratamento que os clubes oferecem às suas categorias de base? Esses jovens praticam o esporte, mas têm a infância e adolescência protegidas. Não prejudicam a sua escolarização em prol do calendário de treinos e campeonatos.

Qual seria o motivo da resistência dos jovens desfavorecidos economicamente e negros durante os peneirões? Não é difícil chegar à resposta: é só ver as histórias de vida desses atletas, para quem a carreira de jogador parece ser uma das poucas alternativas de ascensão social.

A socióloga norte-americana Jane Elliott, no polêmico e ácido documentário "Olhos Azuis" (Blue Eyes), produzido em 1996, solicitou a uma plateia de pessoas brancas que levantassem de suas poltronas caso alguém ali quisesse ser tratado como uma pessoa negra. Ninguém se levantou. Ela repetiu a pergunta e nenhuma reação diferente aconteceu.

O documentário denuncia, entre outras questões, a consciência que os brancos têm em relação ao racismo que pessoas negras sofrem diariamente.

Durante o experimento realizado por ela, nenhum branco reconhece a sua responsabilidade em conservar esta realidade desigual e não se compromete a combater o comportamento racista em si e nos outros brancos ao seu redor. Fica evidente, portanto, que não abrem mão de seus privilégios como pessoas brancas na sociedade norte-americana.

Eu aproveito o questionamento que a pesquisadora provoca durante o documentário para perguntar neste texto. Por que naturalizamos o fato de que crianças negras e pobres têm que se responsabilizar pelo sustento de suas famílias e dividir o seu tempo de infância entre turnos de treinos acreditando que esta é a única chance de tirar seus parentes da linha de pobreza?

Os clubes esportivos não estariam coniventes com a condição de vulnerabilidade social destes jovens, visto que a minoria será aproveitada como joia exemplar, e os atletas excluídos ficarão à deriva? Em muitos dos casos, esses jovens ficarão atrasados em seus estudos e serão emocionalmente afetados com a enorme expectativa frustrada nesta fase da vida.

Não seria de responsabilidade dos clubes mediar e criar novas oportunidades sociais aos jovens que servem, durante um tempo, de matéria prima aos lucros destes grupos?

Na história recente do futebol, a memória trágica dos garotos do Ninho do Urubu alerta para a urgência de pensar neste tema. Guardadas as devidas proporções, a metáfora dos porões dos navios negreiros chegando ao Brasil não é tão absurda quando lembramos do tratamento ofertado aos jovens da divisão de base que morreram no centro de treinamento do clube do Flamengo. Vários meios de comunicação na época chamaram atenção às condições que eles estavam alocados. Assim, o processo judicial e as negociações indenizatórias para com as famílias das vítimas me faz questionar:

Quando chegam às categorias de base dos clubes, a origem social vulnerável destas crianças não sensibiliza os responsáveis a tomar maiores cuidados com seus jovens atletas e a garantir acompanhamento integral durante esta formação? Ou, por serem atletas que ainda não garantem lucro, são simplificadamente vistos como garotos acostumados às dificuldades econômicas e ao racismo diário? Sabemos que muitos projetos pedagógicos exitosos acontecem em grandes clubes no Brasil que se preocupam com esses atletas, mas sabemos também que esta não é a realidade dos pequenos clubes brasileiros.

Seu Anibal não vai entender, mas toda história de jogador de futebol é triste. Falta comida, casa e chuteira. E, por incrível que pareça, quanto mais dificuldade a história contar, mais ela será reconhecida pela elite. Os jovens atletas negros que sobreviveram às intempéries do mar e aos abusos devido às suas condições sociais serão aplaudidos pela exploração do discurso da meritocracia. Como prêmio, serão donos de um palácio em terra firme.

O futebol é uma caixinha branca de surpresas. E, neste caso, uma caixinha branca com tristes histórias dos poucos neguinhos que venceram. Vamos mastigar a amarga conclusão que todos os outros que não venceram viraram comida de tubarão.

- Preciso ir.

***

O ex-árbtiro Márcio Chagas escreve na página @utopiapossível, no Instagram e no Facebook, onde discute o racismo persistente nos esportes.

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