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Cláudio Zaidan - Treinador de futebol não é condutor de drone

O técnico Pep Guardiola  - Lee Smith/Action Images via Reuters
O técnico Pep Guardiola Imagem: Lee Smith/Action Images via Reuters

09/03/2020 04h00

Guardiola, à sua maneira, repetiu o carioca Otto Glória. Encerrada a partida contra o Real Madrid na primeira rodada das oitavas da Liga dos Campeões, o comandante do Manchester City partiu para a conversa protocolar com os repórteres.

Satisfeito, ciente da grandeza da vitória de seu time, o catalão teve o contentamento adicional de ver que os jogadores do City superaram o abatimento provocado pela punição da Uefa ao clube. Dias atravessados na incerteza, na dúvida sobre o que virá, desembocaram em feito notável: a virada no Bernabéu.

Eis que, na prosa com os jornalistas, uma pergunta veio acompanhada de elogio à tática, à escalação, às substituições. Guardiola, então, respondeu que já havia, em outras ocasiões, escolhido a mesma tática, os mesmos jogadores, feito as mesmas alterações, e o time perdeu. Disse mais: no futebol, os resultados são, muitas vezes, determinados por um desvio no caminho da bola; o placar, aqui e ali, expressa o pormenor, o inesperado.

Fosse declaração de um treinador vindo de derrota, querendo negar erros, e a resposta teria arrancado bocejos. Mas foi Guardiola, um dos melhores treinadores da história, quem, logo depois de vitória brilhante, restabeleceu uma obviedade: o trabalho do técnico é importante, mas não deve ser tomado como responsável único, invariavelmente decisivo nas derrotas ou vitórias.

No Brasil, em tempos idos, o problema era distinto, oposto: frequentemente, o treinador era visto como mero distribuidor de camisas, ficava à margem nas crônicas, ignorado em análises. Notem o caso do Lula, que, dirigindo o Santos por doze anos, faturou oito títulos no Paulista, quatro no Rio-São Paulo, dois na Libertadores e dois no Mundial. Mas nunca faltam os que dizem: "Com Zito e Mengálvio no meio-campo e dispondo de um ataque com Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe, qualquer um seria campeão". Certamente. Mas tal conclusão não deve enveredar pela desconsideração de que o esquadrão foi montado pelas mãos de um técnico.

Nas conquistas em 55 e 56, só Pepe, daquele ataque formidável, já estava no time. Em 58, quando Pelé marcou 58 gols no estadual e ganhou seu primeiro título pelo Santos, Lula ainda não contava com Gylmar, Mauro, Mengálvio e Coutinho. Basta uma conversa com Pepe ou Mengálvio para enxergar as qualidades de Lula, incluindo sua capacidade para reconhecer e encaixar talentos, e sua liderança (exercida na hora certa), e sua coragem para escalar o adolescente Coutinho no time titular. É claro que o Santos de Pelé teria acumulado uma montanha de taças mesmo sem o Lula; tal certeza, no entanto, não apaga sua colaboração para que o time, em 1962, tocasse a perfeição.

Lula não revolucionou táticas ou conceitos, mas é injusto ignorar sua importância na construção daquela equipe excepcional. Coisa semelhante aconteceu com o Feola. O primeiro treinador brasileiro a ganhar um Copa do Mundo raramente é citado nos textos e comentários a respeito do Mundial na Suécia; ainda hoje, seu trabalho segue subestimado, pois, afinal, "com Nilton Santos, Didi, Garrincha e Pelé à disposição, só restava ao técnico a tarefa de entregar as camisas.".

É certo que Feola precisou de alguns jogos para abandonar receios, corrigir a escalação, entender que o escrete seria imbatível se entrassem no time os fenômenos convocados (no caso específico de Pelé, a demora decorreu de contusão sofrida antes da Copa). Um dos principais feitos de Feola foi levar para a seleção as ideias de Béla Guttmann, com quem ele havia trabalhado no São Paulo.

O craque e excelente treinador Dino Sani, jogador de Guttmann no São Paulo e de Feola na seleção, confirma que testemunhou tal transposição. Do mesmo modo, Tostão várias vezes ressaltou, na medida certa, a relevância de Zagallo na Copa de 1970. Ainda assim, insiste-se no velho argumento: "Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza, Everaldo, Clodoaldo, Gerson, Rivellino, Jair, Tostão e Pelé teriam ganhado aquela Copa mesmo que ninguém houvesse dirigido o time".

O passar dos anos foi acompanhado de mudanças na maneira como cronistas e torcedores veem os técnicos. A valorização crescente logo desembocou em superestimação, em apreciação excessiva da participação dos treinadores no resultado das partidas. Isto garantiu salários bem melhores, mas também provocou cobrança precoce e precarização das relações entre os técnicos e os clubes. A instabilidade, comum no Brasil, é, agora, fenômeno mundial, do Bayern ao Barcelona.

O futebol deve muito a Herbert Chapman, Gusztav Sebes, Rinus Michels, Telê, Menotti, Bielsa, Guardiola, Klopp e alguns outros, mas o jogo, felizmente, continua sujeito ao imprevisto, ao inesperado, à qualidade dos jogadores e, é claro, ao talento. Sem os craques, o futebol nada seria.

Guardiola não respondeu apenas ao jornalista que o elogiou, mas, principalmente, aos que pretendem reduzir o que se passa em um jogo aos acertos e erros dos técnicos. Renovou, assim, a constatação do Otto Glória: "Quando o time ganha, o treinador é bestial; quando perde, é uma besta.". O sujeito escolhe os titulares e as opções que terá no banco, determina a tática, dita funções, faz as substituições durante a partida, enfim, seu trabalho não pode ser tomado como irrelevante ou supérfluo. Mas tampouco há cabimento na valorização exacerbada das decisões do treinador, como se tudo no jogo dependesse delas. O técnico de futebol não é o condutor de embates eletrônicos, não dispõe de controle remoto.

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