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Márcio Chagas: "Que ninguém detenha o corpo negro de ninguém"

O malinês Moussa Marega, do Porto, foi alvo de insultos racistas durante um jogo em Portugal, mas sua revolta foi contida -
O malinês Moussa Marega, do Porto, foi alvo de insultos racistas durante um jogo em Portugal, mas sua revolta foi contida
Márcio Chagas

De Porto Alegre

22/02/2020 04h00

Analisei a cena em que o jogador Marega foi ofendido pela torcida e impedido pelos colegas e jogadores adversários de protestar contra o ato de racismo que sofreu. Fiquei impressionado com a energia colocada no corpo do jogador para que ele se calasse, restringisse seus movimentos e desistisse de se defender diante de uma multidão que, porque pagou, acha que o tem o direito de naturalizar a barbárie.

A cena era sobre a contenção física de um corpo negro que estava naquele momento sendo agredido moralmente e fisicamente, ao contrário do que a turma do "deixa disso" quer que pareça nestas situações de racismo.

No Brasil, os casos denunciados no futebol reforçam a ideia de que não somos diferentes. Durante noventa minutos os corpos negros dos jogadores podem ser odiados, e o jogador, como contratado, deve obediência aos seus senhores contratantes. Estou me referindo aos empresários brancos que vigiam as condutas dos jogadores e aplicam também restrições para o posicionamento político do atleta.

O que acontece ao jogador negro dentro do campo parece não sensibilizar a arbitragem e as autoridades compostas em sua maioria por pessoas brancas. Portanto, cadeiras atiradas no campo, bananas ou sons imitando macacos não são suficientes para suspender uma partida porque quem manda é o dinheiro.

As punições ao comportamento racista durante um jogo de futebol se revelam atreladas à defesa dos interesses das bilheterias e das cifras milionárias que giram em torno de um dos negócios mais rentáveis do mundo.

Quando os outros atletas tentam deter o corpo de Marega sinto como se as cicatrizes do período escravagista voltassem a verter aquele líquido desagradável que denuncia o desejo das pessoas brancas em rebaixar o corpo negro. Ele precisa ficar ali, no centro da humilhação, aguentar firme e continuar o jogo.

Marega - Divulgação Porto FC - Divulgação Porto FC
Imagem: Divulgação Porto FC

O corpo negro, que hoje é submetido aos abusos de seus empresários e patrocinadores, outrora foi o corpo que apanhou dos senhores de engenho.

Hoje, na violência do dia a dia, o que resta ao corpo negro é que seja vigiado e despotencializado. E ainda sim é uma alternativa ao genocídio de pessoas negras no Brasil.

Por tudo isso entendo que o futebol brasileiro é uma representação contemporânea da escravatura. E a simples configuração dos setores da plateia já reforça a ideia de uma pirâmide social. No topo da pirâmide estão os homens brancos engravatados, sentados em seus camarotes ou tribunas. Lá na camada inferior, na geral ou popular, estão em sua maioria os pretos, mestiços e brancos pobres.

E, no largo e complexo espectro que se localiza no meio, o intermediário entre os dois extremos, ficam as boas intenções do diabo

Se você acha um exagero pensar no racismo estrutural no futebol, te convido a pesquisar sobre a carreira dos jogadores negros que, em sua grande maioria, ocupam posições subalternas na escala de poder do futebol. Eles são os personagens que proporcionam entretenimento aos brancos, mas que não chegarão às posições de comando e cargos executivos.

Você lembra de algum presidente de um grande clube brasileiro que seja negro? Algum diretor executivo negro? Algum presidente da CBF negro? Você já pensou como funciona o processo seletivo de jovens negros aspirantes a atletas e todo o sistema de permanência e ascensão de atletas negros nos clubes?

Já percebeu que meninos brancos de famílias privilegiadas economicamente não são incentivados a seguir carreira como jogador de futebol? Não se trata de uma mera coincidência, mas de uma estrutura de manutenção de privilégios dependendo da cor da pele

É, meu irmão, temos muito que conversar. Futebol é uma caixinha branca de surpresas.

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