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André Rocha

De Dome a Ceni, de Coudet a Abel. Mercado de técnicos é um suco de Brasil

Eduardo Coudet, técnico do Inter, e Domenec Torrent, técnico do Flamengo - Pedro H. Tesch/AGIF
Eduardo Coudet, técnico do Inter, e Domenec Torrent, técnico do Flamengo Imagem: Pedro H. Tesch/AGIF

Colunista do UOL Esporte

10/11/2020 02h39

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Domènec Torrent foi a terceira opção no Flamengo para substituir Jorge Jesus. O alvo era Leonardo Jardim: também português, com perfil semelhante e mais estofo pelo título francês e por eliminar o City de Guardiola com o Monaco em 2017. Este recusou, assim como o "plano B" Carlos Carvalhal.

Mas a política pressionou a volta dos dirigentes da Europa com a definição do treinador. A escolha, que já seria complicada com muito critério, carregou pouca convicção. A urgência foi maior, mesmo com toda pompa de entrevistas e a aura de profissionalismo na viagem de Marcos Braz e Bruno Spindel.

Ainda havia a sombra de Jesus, que mimou com taças uma torcida já megalomaníaca, no geral. A exigência era vencer tudo de novo, mas com espetáculo desse tal "jogo de posição" do Pep Guardiola, de quem Dome foi auxiliar. Tudo isso gerindo um grupo de estrelas "viciadas" nos métodos e no carisma do português e vivendo um luto pela ausência da torcida no Maracanã.

Faltou tato ao catalão, assim como noção da realidade que o cercava. O jeito "boa praça" contrastava com princípios inegociáveis e pouca flexibilidade no modelo de jogo, mesmo percebendo que seria impossível jogar sempre com linhas adiantadas, mas sem vigor físico para ser tão intenso na pressão no campo de ataque.

Derrotas contundentes, gols sofridos em todas as partidas e, no final, talvez começando a perceber que seria difícil reverter o quadro, comportamento arredio com a imprensa. Combinação letal em um caldeirão do clube que sonha em construir uma hegemonia inédita por aqui, como Bayern de Munique, Juventus e PSG em seus países. Um devaneio no meio do nosso caos rotineiro, adicionando aí "apenas" uma pandemia.

Demissão e pressa para encontrar um substituto. De novo a urgência que torna os parâmetros um tanto confusos. Rogério Ceni, nome sempre comentado entre a cúpula, ganhou força por um "critério" interessante, segundo uma fonte do clube: se o problema do Flamengo é sofrer muitos gols, nada melhor do que contratar o técnico do Fortaleza, time com a defesa menos vazada do Brasileiro.

Simples assim, sem entender que o contexto do atual campeão nacional e sul-americano é bem diferente do time cearense. Lá é possível ter proposta reativa em muito mais jogos. No Fla é obrigatório jogar como protagonista diante de adversários com a faca nos dentes, deixando tudo em campo contra o "time da moda".

Na prática, é uma aposta tão arriscada quanto Dome. E Ceni vai deixar o Fortaleza na mão novamente, mesmo prometendo há pouco tempo cumprir o contrato até o final. Mas nem pôde pensar muito, já que o Flamengo quer ter o novo profissional à beira do campo já na quarta, contra o São Paulo pelas quartas de final da Copa do Brasil no Maracanã. Se levar outra pancada com Mauricio Souza, do sub-20, no comando o caldo entorna de vez. A política sempre suplantando questões técnicas.

Mesmo problema de Eduardo Coudet no Internacional. O argentino acreditou embarcar em um projeto diferente quando o clube gaúcho aceitou esperar o fim da temporada com o Racing e utilizou Zé Ricardo como "tampão" depois da demissão de Odair Hellmann. Trabalhou duro, queimou etapas para tornar o time competitivo já em fevereiro, para garantir uma vaga na fase de grupos da LIbertadores.

Conseguiu com louvor, mas havia uma meta mais importante que ele não conhecia. Ou imaginou ser do tamanho de outros centros. Era preciso vencer o "campeonato à parte" com o rival Grêmio. Na Libertadores, mas também no estadual. Os reveses com o time pilhado e confundindo intensidade com truculência abalaram a relação, sem considerar que era um trabalho de poucos meses, com uma pausa sem precedentes por causa da pandemia, contra outro de quatro anos.

A turbulência política e as cobranças desmedidas desconsideraram baixas sérias no elenco, como Paolo Guerrero e Renzo Saravia, sobrevivência na Libertadores e na Copa do Brasil e, principalmente, liderança no Brasileiro. Com oscilações e também o problema de ter uma proposta de jogo que depende de intensidade e precisar administrar um elenco estafado e desigual.

Coudet parece ter cansado e deve aceitar proposta do Celta de Vigo. Deixa o topo da tabela do Brasileiro para tentar salvar o time espanhol do rebaixamento. Possivelmente com salário inferior em euros. Mas longe desse moedor de treinadores, no qual os parâmetros para avaliação do trabalho podem ser os mais difusos. E será tachado de "traidor", claro. A narrativa mais fácil que fisga o torcedor pela paixão.

Uma cultura difícil de mudar. Somos latinos. Passionais, instáveis, carentes. Jogadores precisam ser mimados, seduzidos ou, no mínimo, convencidos. Mas em qualquer lugar do mundo se não houver um mínimo de confiança mútua fica impossível. Gestão de vestiário, habilidade no relacionamento com um grupo que agora inclui família, staff e redes sociais ficou bem mais complexo.

E no Brasil ainda é preciso ser escudo de dirigente. Coudet pedia reforços, criava problemas. Por isso o Inter foi atrás de Abel Braga. Ídolo da torcida, estilo paizão, carisma. A esperança tão brasileira de que o que funcionou em 2006 vai dar certo agora. Mistura de pensamento mágico com saudosismo. Zero análise técnica e tática. Certamente os jogadores sentirão o abismo na metodologia de treinamentos.

Mas quem se importa? Talvez nem mesmo os atletas, que também adoram um paternalismo e não um louco chato gritando nos ouvidos em estádios vazios. A menos que ele tenha mais títulos que derrotas, como Jorge Jesus no Flamengo. Nada mais 2020 que o Internacional apostar em Abel. E pode dar certo, pela falta de tempo que nivela por baixo o desempenho, assim como achatou a tabela do Brasileiro. Sem treinar, a diferença entre o conteúdo atualizado e o "Vamo lá!" fica bem menor.

A hora de demitir e a definição do perfil no momento de contratar são um mistério. No mundo todo. Ou alguém acha que o Real Madrid deveria insistir com Rafa Benítez e deixar Zinedine Zidane no Castilla em 2016? Ou o Bayern de Munique dobrar a aposta em Niko Kovac e não promover Hans-Dieter Flick? .

É preciso analisar caso a caso e nunca haverá certeza. O Vasco demitiu Ramon Menezes por medo de dispensar o auxiliar efetivado com o time na zona de rebaixamento. Contratou Sá Pinto, empurrado pela "moda" de treinadores portugueses...e o time cruzmaltino pena no Z-4. Será que valeu a pena dispensar quem conhecia os problemas do clube dentro e fora de campo para trazer um estrangeiro tentando se situar num cenário complexo até no processo eleitoral?

A saída pode ser a dose certa de razão e intuição, feeling. Nem esse ciclo maluco de tentativa e erro, nem o fundamentalismo da permanência até o fim da temporada que, já vimos tantas vezes, nem sempre é o mais justo. E quando há recusa da primeira opção da contratação, numa equação que às vezes precisa considerar idioma, logística e sintonia com as características do elenco, a escolha já começa a ficar aleatória. Não é simples.

Por isso a segunda-feira do futebol brasileiro foi tão insana. Como é quase sempre, até mesmo nas uniões mais felizes. Porque o mercado de treinadores é um suco de Brasil. Resta compreender, mesmo sem concordar.