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Rios da Amazônia garantem sucesso do agronegócio e água para Sul e Sudeste

Boto-cor-de-rosa no Rio Negro - iStock
Boto-cor-de-rosa no Rio Negro
Imagem: iStock

de Ecoa, em São Paulo (SP)

06/06/2023 06h00

Às cinco horas da manhã, a pequena Márcia já estava de pé. Todos os dias, ela ia com o pai observar o rio. "Ouça o rio", o pai dizia. Depois de cerca de duas horas ouvindo as águas do Solimões, ela mergulhava. "Confie no rio e aprenda com ele", aconselhava o pai.

"Fui entender mais tarde que meu pai estava me apresentando à sabedoria milenar do rio que, quando criança, eu não entendia, mas que mais tarde iria servir para a formação da minha identidade como mulher kambeba", conta Márcia Wayna Kambeba, mestre em geografia e escritora.

O povo kambeba, da região do Alto Solimões, no estado do Amazonas, é o povo das águas. Os mais velhos costumam contar que o povo nasceu de uma gota d'água que caiu do céu em uma grande chuva. Nessa gota, estavam duas gotículas: o homem e a mulher.

Quando a gota se arrebentou e liberou as gotículas, elas se chocaram no tronco de uma grande sumaumeira. Ali, nasceram o homem e a mulher kambeba. "Por causa disso é que o rio tem fundamental importância", diz Márcia.

É em meio ao rio de águas claras que a sobrevivência do povo é garantida. O rio é estrada, é fonte de alimento, é cultura, é pedagogia e, para Márcia, é também poesia. Quando perguntada sobre a importância do rio Solimões para seu povo, ela declama: "A água é a mãe que sustenta/A vida que nasce como flor/Alimenta a planta e o ser vivente/É estrada onde anda o pescador".

Reunião de águas do Rio Negro com Solimões na Amazônia - iStock - iStock
Reunião de águas do Rio Negro com Solimões na Amazônia
Imagem: iStock

As águas da Amazônia são mães que sustentam não só o povo kambeba. Para 1,2 milhão de pessoas que vivem na Amazônia brasileira, segundo estimativas governamentais, os rios são os principais meios de transporte da região.

A pesca de peixes de água doce é garantia de alimentação para quem vive próximo aos rios. E É durante as cheias, também, que as águas adubam as várzeas para que, durante as secas, o solo seja fértil para o plantio.

Tem metal nessa água

Mas a presença de metais pesados nas águas amazônicas tem se tornado cada vez mais comum, como mostra a pesquisa Simone de Fátima Pereira, professora e líder do grupo de pesquisa em química analítica e ambiental da Universidade Federal do Pará.

Levando o nome ao pé da letra, metais pesados são conhecidos por serem mais densos. Além disso, são bastante tóxicos.

"À medida que esses elementos estão nos rios, eles entram no ciclo hidrológico, ou seja, eles estão no rio, no ar, no solo, nas águas subterrâneas e é principalmente por meio destas que as pessoas se contaminam", elucida Simone.

Nas águas dos poços das cidades pesquisadas por ela, Simone identificou a presença de chumbo, alumínio e fósforo em altas concentrações. "As pessoas não têm alternativa e continuam tomando essa água", conta.

Rio Amazonas. 1,2 milhão de pessoas que vivem na Amazônia brasileira usam rios como meios de transporte - Getty Images - Getty Images
Rio Amazonas. 1,2 milhão de pessoas que vivem na Amazônia brasileira usam rios como meios de transporte
Imagem: Getty Images

Como os rios da Amazônia 'chegam' para o resto do Brasil

Para além de afetar diretamente a vida de indígenas que vivem dos rios na região, os metais na água prejudicam o país inteiro.

"O bioma amazônico é fundamental para a manutenção da vida planetária, não só de quem vive na Amazônia", como explica a geógrafa Márcia Kambeba.

Isso porque essa relação entre vegetação e água atua como um grande ar-condicionado global. Uma verdadeira bomba d'água. "A Amazônia é uma grande reguladora do clima, daí a preocupação global com sua preservação", explica Carlos Durigan, geógrafo e diretor da ONG WCS Brasil (Associação Conservação da Vida Silvestre, em português).

Além de umidade, a Amazônia e seus rios nos dão chuvas. "Tem uma corrente que desce da região do Atlântico rumo ao sul, que ao passar por cima da Amazônia leva boa parte da umidade gerada pela floresta e pelos rios rumo ao sul do país. Assim, quando ela encontra, por exemplo, uma frente fria, gera chuva, seja na região Centro-Oeste, seja nas regiões Sudeste e Sul", explica Durigan.

É a umidade amazônica que garante, por exemplo, que as regiões Sul e Sudeste tenham seus reservatórios cheios d'água.

É ela, também, a responsável pelo fato do Brasil ser uma grande potência do agronegócio. A região Centro-Oeste, a principal na produção agrícola para exportação, é uma das que mais precisam da chuva garantida pela Amazônia.

São os rios da Amazônia que ajudam a encher os reservatórios do Sul e Sudeste do Brasil - Getty Images - Getty Images
São os rios da Amazônia que ajudam a encher os reservatórios do Sul e Sudeste do Brasil
Imagem: Getty Images

"A gente vem perdendo esse regime de chuva por conta da crise climática. Isso gera impacto nos rios que começam a baixar", diz Márcia.

A professora Simone de Fátima Pereira pôde conferir os estragos dessa crise de perto. "A seca que pude ver com meus olhos em 2015 nunca tinha visto igual em toda a minha vida. Fiquei de boca aberta de ver isso acontecendo na região amazônica", lembra.

A seca extrema provocada na região por um fenômeno conhecido como El Niño entre 2015 e 2016 esteve associada às queimadas florestais. 2,5 bilhões de árvores morreram e 495 milhões de toneladas de gás carbônico foram liberadas na atmosfera.

Dados divulgados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) mostram que cenas como essa serão cada vez mais comuns na região e podem ser, ainda, irreversíveis. "Esses problemas climáticos refletem em outras regiões. Todo o transporte de umidade da Amazônia cessa e o pessoal do Sudeste, por exemplo, vai sofrer porque não vai ter chuva", diz Pereira.

Crianças contra a poluição dos rios

As crianças kambebas, assim como Márcia no passado, precisam aprender e se relacionar com o rio. Mas, diferentemente da geógrafa, antes de ouvirem as águas e mergulharem, elas têm uma tarefa.

Saem pelo igarapé samauma coletando plásticos, latas e tudo mais que estiver poluindo as águas e seu entorno. "Esse é um trabalho necessário para que elas tomem banho no igarapé. Mas é enxugar gelo. Depois, as comunidades que vivem por ali jogam tudo de novo", conta Márcia.

Pequeno rio no município de Presidente Figueiredo - Getty Images - Getty Images
Pequeno rio no município de Presidente Figueiredo
Imagem: Getty Images

Se enxugar gelo nos rios amazônicos não é o suficiente, o também geógrafo Carlos Durigan conta o que pode ser. "Ações efetivas precisam ser realizadas em uma escala ampla e, para isso, precisamos que os países que têm seus territórios tomados por esse bioma atuem em cooperação".

Afinal, rio não respeita fronteiras. Se o Peru polui, por exemplo, o que adianta o Brasil preservar? Pensando em garantir essa cooperação por um bioma saudável, foi criada a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Além disso, existem iniciativas com intercâmbios de conhecimento entre unidades de pesquisa, universidades, ONGs e representações sociais dos países amazônicos.

"Gerar conhecimento, sensibilizar e mobilizar, são essas as três frentes para que consigamos construir um cenário melhor para o planeta e para nós porque eu acho que quando o planeta estiver bem, nós também estaremos", diz Durigan.

Quando os rios da Amazônia estiverem bem, nós também estaremos", Carlos Durigan, geógrafo

Em celebração ao Dia do Meio Ambiente, Ecoa relembra histórias marcantes contadas por aqui que nos fizeram refletir sobre o assunto. Para saber mais sobre a importância dos rios da Amazônia, leia a reportagem completa aqui.

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