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Bruce Albert: 'Parece que o governo Lula não é capaz de cumprir promessas'

Invasão garimpeira causa epidemias e morte entre os yanomamis. Na foto, Bruce Albert, antropólogo, ajudando yanomami adoentado - Charles Vincent/ISA
Invasão garimpeira causa epidemias e morte entre os yanomamis. Na foto, Bruce Albert, antropólogo, ajudando yanomami adoentado Imagem: Charles Vincent/ISA

Luciana Bugni

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

01/06/2023 06h00

Desde que chegou ao Brasil, há quase 50 anos, o antropólogo francês Bruce Albert viveu muitas fases ao lado dos yanomamis, em Roraima. Passou por testes, se sentiu sozinho, provou que era um branco diferente daqueles que se conhecia no território e se instalou por ali. Desde então, luta incansavelmente para que o povo e a cultura não desapareçam no que ele chama de último ato do colonialismo - há cinco décadas ele vê militares brasileiros tentando dizimar a população yanomami.

Em 2023, Albert lançou o livro "O Espírito da Floresta" (Cia das Letras, R$ 59,90), o segundo escrito com o amigo Davi Kopenawa, líder político yanomami e xamã. O primeiro da dupla, o já clássico "A Queda do Céu," foi publicado em 2015, traduzido para sete idiomas e é considerado tanto um marco na antropologia, quanto uma "Bíblica xamânica". Para Ecoa, Bruce fala da luta, de seu legado, do impacto negativo do governo Bolsonaro e de panoramas para o futuro do governo Lula. O spoiler: a solução está longe de chegar.

Quem compra ouro não está nem aí para Amazônia. Bruce Albert, antropólogo e escritor

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o antropólogo Bruce Albert em foto no campo (Papiú), 1984
Imagem: Arquivo

Uma luta que dura meio século

Bruce Albert estava no colégio nos anos 1960, na França, quando escutou pela primeira vez falar de antropologia. Foi ali que começou a ler "Tristes Trópicos", livro de Lévi-Strauss escrito em 1955, sobre a saga do autor no Xingu. "Esse imaginário da Amazônia é cultural na França desde o Renascimento e isso estava cozinhando em minha cabeça em uma idade em que tinha muita vontade de viajar. Na faculdade, na década de 70, tive um professor, Patrick Menget, que havia trabalhado no Brasil. Ele me disse que conhecia gente que fazia pesquisa no Brasil", contou.

Livros de Bruce Albert

'A queda do céu'

'O espírito da floresta'

Menget fez a ponte e Bruce recebeu uma carta que procurava estudantes para fazer um trabalho em Roraima. No documento, avisavam sobre perigos para estrangeiros como doenças e a reputação dos yanomamis de guerreiros xamãs. "Não me impressionou nada, com 20 anos eu só queria aventura e sair da França".

Foi assim que chegou ao rio Catrimani, em Roraima, em 1974, onde ficou por conta própria.

"É claro que me senti sozinho. É uma aventura muito solitária", ele diz, relembrando o choque cultural, físico e de idioma. Aprendeu português com padres italianos nas missões. E, sem falar yanomami, passou tempos difíceis. "Dizem que antropólogos estudam, mas hospedado em uma maloca com 50 pessoas, o estudado era eu. Me colocavam para fazer caminhadas no mato... passei pelo período de prova com sucesso e, depois de ganhar a confiança, me senti bem com eles. Virou uma experiência de muita solidariedade, simpatia e prazer", ele conta.

O período em que Bruce chegou ao Brasil não era amistoso para indígenas e para quem defendia a causa. No auge da ditadura, os projetos de estradas que cortavam a Amazônia se concretizavam. Às margens das construções, o povo yanomami passava fome e vivia na miséria. "Ali, aprendi a dar injeções, tentávamos recuperar meninas prostituídas das empresas de desmatamentos... era tudo chocante".

Alguns anos depois, em 1985, os militares saíam do poder. Com a Constituição de 1988 e o retorno da democracia, o caminho parecia ascendente. "Tínhamos a sensação de estarmos nos dirigindo para um futuro melhor. Mas o garimpo surgiu logo na sequência, com o envolvimento das Forças Armadas, e em pouco tempo fomos impedidos de entrar em toda a área. Foi horrível", diz.

Fazer o possível para evitar o pior é o lema que permite aguentar psicologicamente. Bruce Albert

2 - © Beto Ricardo / ISA - © Beto Ricardo / ISA
Davi Kopenawa, líderança Yanomami, conversando com o antropólogo Bruce Albert, Boa Vista, Roraima
Imagem: © Beto Ricardo / ISA

O desastre bolsonarista

Foi só na década de 1990 que os aliados conseguiram voltar para a área com equipe médica e constatar que 13% da população morreu na primeira invasão do garimpo. "Depois disso, começou um período de relativa tranquilidade que reconstituiu a população yanomami. Fizemos programas de escolas bilíngues, assistência médica e o povo cresceu de novo. Mas a vida dos yanomamis é indexada sob o mercado internacional do preço do ouro e em 2015 a situação começou a piorar. Aí, veio o governo Bolsonaro e, com ele, o apocalipse. Ele não só não impediu o garimpo, mas o incentivou. E proibiu o social, fez de tudo para matar os yanomamis", conta ele, que briga com o ex-presidente há mais de 30 anos, quando, então deputado, Jair Bolsonaro tentava impedir a homologação da Terra Yanomami, que, apesar disso, aconteceu em 1992. Uma grande vitória: a área tem o tamanho de Portugal.

"Quando virou presidente, ele sabia que era complicado mexer no decreto juridicamente, então achou por bem esvaziar o lugar eliminando os habitantes. Tirou assistência médica e deixou o povo morrer. Espero que ele seja incriminado por genocídio: colocar um povo em condição insustentável para sobrevida também é crime", diz, entristecido.

Nunca ter a prepotência de pensar que, durante nossa existência enquanto indivíduo, se pode resolver uma situação dessa. Bruce Albert

Se nos anos 1970, Bruce e sua turma acharam que mudariam o mundo, com o tempo veio um entendimento de que os interesses econômicos pela terra eram um processo que ultrapassa a duração de sua vida.

"O melhor que a gente fez foi dar escolas e formar a geração dos artistas, agentes de saúde, lideranças políticas, formar a geração para carregar a continuidade da luta. Criamos a escrita yanomami. Pessoalmente, ver que a coisa no final é pior que o começo não é animador. Mas é positivo é ver antropólogos e indigenistas jovens tocando o trabalho na linha de frente.", diz.

3 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Bruce Albert com Davi Kopenawa, em Demini, 2002
Imagem: Arquivo Pessoal

A solução é o Exército

Saúde, violência, prostituição, pobreza: os males trazidos por garimpeiros ilegais, agora como respaldo do crime organizado são diversos. Para Bruce, não existe uma solução definitiva para essa guerra. "É um processo de luta. Se não tivéssemos feito nada eles não existiriam. Éramos três ou quatro pessoas e brecamos o garimpo nos anos 1980. Precisamos ter uma força que se contrapõe aos interesses econômicos. Os yanomamis são o último capítulo da conquista da corrida ao ouro que começou 500 anos atrás. E isso é violento e trágico. Queremos que o povo não suma, que fique vivo com sua cultura".

Ele afirma que os militares no Brasil usam o mesmo discurso há 50 anos: querer povoar a fronteira com brasileiros "de verdade" e não indígenas, desmembrando o território.

Para ele, a única entidade que pode resolver a questão do crime organizado é o Exército. "Hoje, não há envolvimento. Estamos entregando o território e as fronteiras para o crime organizado em uma república pirata. É um câncer entre os dois países. Donos de garimpo são aliados à facção, ninguém pode entrar na região no centro do território. Para mim, a responsabilidade e omissão criminosa é do militar. Eles acham que são donos da república até hoje", afirma.

4 - REUTERS/Bruno Kelly - REUTERS/Bruno Kelly
Indígenas Yanomami em mina de ouro na Amazônia
Imagem: REUTERS/Bruno Kelly

E agora?

Bruce Albert diz que o fato de o desmatamento continuar crescendo em 2023, já sob o governo Lula, não o impressiona. Segundo ele, o governo federal tenta fazer o que é possível, mas os políticos locais são 100% bolsonaristas em toda a Amazônia. "O peso da oposição aos yanomamis é gigantesco. O Brasil colonial está vigente na Amazônia. O governo Lula, como toda esquerda, é muito centralizado. Isso dificulta a intervenção de ONGs de saúde, por exemplo. Temos ali jovens antropólogos que falam a língua yanomani e não estamos em condição de desperdiçar competência", conta.

Para ele, o governo, que começou com determinação em defender uma agenda socioambiental ambiciosa, recebeu elogios e apoios internacionais, que colocou povos indígenas em primeiro plano. Mas, sob a pressão do Congresso e com o aval de boa parte da bancada do governo, "uma saraivada de medidas anti-indígenas e ecocidas foram tomadas, como desmembramento do MMA e MPI, Marco Temporal, petróleo na foz do Amazonas, ameaças à Mata Atlântica", ele diz.

"Parece que o governo Lula não é capaz de cumprir as promessas socioambientais feitas no palco internacional desde sua posse, e que boa parte da sua própria tropa (bancada e governo) considera secundária e mesmo dispensável", diz.

No caso dos yanomamis, Bruce julga que os resultados iniciais foram encorajadores, mas, hoje, os garimpeiros permanecem entrincheirados na TI Yanomami, resistindo a tiros contra as equipes do Ibama e da PF, impedindo o atendimento sanitário e humanitário. "Diante desta guerrilha, nenhuma atitude do Ministério da Defesa responsável pela segurança das áreas de fronteiras da Amazônia. A área militar se omite."

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