Pai de todos

Aos 93 anos, cacique Raoni quer seguir na luta que o levou a ser indicado ao Nobel da Paz: 'Cuidar do povo'

Caroline Apple (texto) e Gabi di Bella (fotos) Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Gabi di Bella/UOL

Cacique Raoni é um guerreiro defensor da preservação da natureza e da demarcação de terras o tempo todo. Esse indígena kayapó não chega em casa e guarda seu botoque (disco que de madeira que usa na boca) e pendura seu cocar para assumir outra personalidade.

Nessa luta, já apertou a mão de pessoas como do ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek, do rei da Bélgica Leopoldo 3º e do papa João Paulo 2º. Também já esteve presente em eventos históricos como a demarcação do Parque Nacional do Xingu e a posse de Lula em 2023, quando subiu a rampa do Planalto para passar a faixa presidencial. Além disso, Raoni foi indicado a receber o Prêmio Nobel da Paz em 2020 — mas não conquistou

Como é impossível falar do Xingu sem falar de Raoni, ele esteve em São Paulo para prestigiar a mostra "Xingu: Contatos" e outros eventos no IMS (Instituto Moreira Salles).

Seus 93 anos lhe conferem o caráter de entidade, que desistiu de falar português ao assumir que se expressa melhor em sua língua nativa. Em kayapó, as falas do cacique são articuladas, potentes e expressivas, gerando grande expectativa do público restrito que o aguardava no centro cultural da avenida Paulista.

E foi em uma das salas do IMS que Raoni e sua equipe receberam a reportagem de Ecoa, para quem, felizmente, ele não respondeu nenhuma pergunta de forma direta. Em vez disso, trazendo a força viva e orgânica da floresta em cada "não-resposta", trouxe ensinamentos profundos sobre a importância da luta pelo respeito à vida e toda sua forma de manifestação.

Gabi di Bella/UOL

Ecoa: O que simboliza o amor para você e como ele se reflete na floresta?

Raoni: Lembrei da minha infância, quando meu pai me dizia que quando eu encontrasse alguns povos, eu teria que ter amizade com eles, ter paz e união para estarmos juntos, para criar a amizade, e foi o que eu fiz.

Foi a partir desses encontros que refleti sobre maneiras de como defender o meio ambiente, porque é algo muito importante para todos nós, como vida, como seres humanos.

Meu pai dizia que se acabasse tudo nesse planeta, as consequências viriam. Se acabasse com a árvore, viria muito vento forte. Então vim lutando.

Minha luta hoje é defender a vida, a floresta, e também meu povo indígena para que não haja ameaças e violências, porque meu povo precisa crescer. Muitos povos desapareceram como indígenas. Então, os que estão aqui hoje, eu defenderei até meu último momento. Assim que é minha luta.

Gabi di Bella/UOL Gabi di Bella/UOL

Como o senhor e seu povo se sentiram quando foi oficialmente fundado o Parque Indígena do Xingu?

O jeito do Claudio [Villas-Bôas] falar com as pessoas, de se expressar, muitos parentes não gostaram porque achavam que ele estava bravo, mas ele só estava nos orientando. Por causa disso, muitos foram embora e só sobraram quatro pessoas e uma era eu.

Naquele momento, o Claudio começou a nos ensinar sobre vários tipos de coisas dos brancos, de adultos. Éramos crianças, jovens, na época. Quando ele terminou de nos ensinar, ele fez só uma pergunta para todos nós: "O que vocês querem?".

Nós não tínhamos noção de muita coisa. A gente não sabia o que era demarcação e como isso ajudaria. Mas, um dia, em meio a um momento de descanso, um parente veio reforçar o que o Claudio perguntou. A gente não sabia como responder. Falamos sobre as demarcações de terra de outros parentes, então pensamos que teríamos que demarcar algo para nós também.

Então falamos com o Claudio sobre a demarcação do Parque do Xingu. Eu mesmo entreguei o documento para o presidente da Funai. Quando foi demarcado, ficamos muito contentes. Fizemos muita festa.

O cacique e liderança indígena Raoni em visita ao IMS (Instituto Moreira Salles), em São Paulo (SP) - Reprodução/Rei da Bélgica Leopoldo III - Reprodução/Rei da Bélgica Leopoldo III
Cláudio Villas-Bôas, Raoni e o fotógrafo Jesco Von Puttkamer no Xingu, em 1964
Imagem: Reprodução/Rei da Bélgica Leopoldo III

Gabi di Bella/UOL

E como foi para o senhor o contato com os irmãos Villas-Bôas?

Quando soubemos que o grupo de Orlando fez contato com o povo, eu estava em outra região, que era povo Tapirapé. Então, seguimos rumo até essas pessoas que estavam com o meu povo.

Naquele tempo, quando o homem branco chegava, ele entregava presentes, como facas, facão, machado...eles sempre entregavam esse tipo de ferramenta para o meu povo. Meu pai já tinha me orientado sobre o contato com pessoas de outras etnias, então eu não tive medo.

Segui esse caminho junto com eles para ajudar e trabalhar. Construímos uma pista para o avião descer. No meu primeiro contato com eles, eu não sabia de nada, nem falar a língua deles e nem entender o que eles falavam.

Eles pediram para eu pegar um tipo de lenha para fazer fogueira, mas eles falavam na língua deles, e eu nunca tinha escutado português. Então, ele [Orlando] chegou em mim e me mostrou um pequeno tipo de lenha que estava próximo e falou: "Essa é a lenha pequena."

Ali eu entendi que era para eu pegar lenha para fazer fogueira, então peguei [a lenha] e assamos algumas coisas para comer antes da jornada que faríamos. Depois conheci muitas pessoas.

O que esses não indígenas como o Claudio, o Orlando, o Lula e o Sting têm em comum para terem se tornado seus amigos?

Eu sou o pai de todos vocês, o avô de todos vocês. Eu sempre penso positivo para todos nós.

Temos um único criador, que nos criou. Todos nós estamos aqui por causa dessa pessoa que criou nós. Por isso, devemos cuidar uns dos outros, nos respeitar, sermos amigos e irmãos de todos.

Por ter essa orientação é que gosto de todos. Gosto de ajudar todo mundo. É dever cuidar um do outro para podermos estar juntos aqui.

Muita gente fala que eu sou ruim, mas essas pessoas que falam isso são pessoas que querem o mal de mim e de todos. Por isso que eu vim para somar nessa luta para vivermos nessa terra com tranquilidade, comer bem. Por isso estou aqui.

Gabi di Bella/UOL Gabi di Bella/UOL
REUTERS/Ricardo Moraes
Raoni foi uma das pessoas escolhidas para passar a faixa presidencial ao presidente Lula (PT)

Como os não indígenas podem colaborar com a causa indígena e ambiental?

Para essa caminhada, todos nos temos que falar só uma língua. Todos nós devemos focar em uma coisa só para andarmos juntos no caminho certo, no bem e viver muitos anos nesta terra.

Para proteger nós e a floresta, nós devemos estar juntos, falarmos juntos, escrevermos juntos para todo mundo ver. Isso vai viabilizar para que outros somem à nossa luta.

Eu não quero que continue essa destruição, porque trará consequências ruins. Que haja sempre sombra para todos nós.

Quero registrar que na conversa que tive com outras pessoas, até mesmo com o Lula, sobre as terras indígenas, falei como vocês, brancos, têm o conhecimento de escrever, fazer projeto e ajudar a reforçar a importância de cuidar do nosso povo.

Muitos estão sendo violentados e ameaçados dentro de seus territórios, por isso precisam ter suas terras demarcadas.

Muita gente admira a minha luta e eu sempre digo que isso é uma forma de ser um pajé que defende a vida nesta terra.

Raoni, liderança indígena

Gabi di Bella/UOL Gabi di Bella/UOL

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