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A ciência justifica preconceitos? Entenda o que é o racismo científico

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Ed Rodrigues

Colaboração para Ecoa, do Recife (PE)

12/12/2022 06h00

No dia 28 de setembro deste ano, a renomada revista científica Nature publicou um editorial no qual fez um mea culpa por ter contribuído com o racismo científico em suas publicações ao longo dos 150 anos do periódico britânico. Na autoavaliação, a Nature admitiu ter divulgado artigos que, segundo a revista, deram força a preconceitos, muitas vezes de maneira sexista e elitista.

No texto intitulado 'Como a Nature contribuiu para o legado discriminatório da ciência', o veículo destacou que a "ideia de que alguns grupos - pessoas não brancas ou pobres, por exemplo - eram inferiores alimentou discriminação e racismo irreparáveis".

Ecoa conversou com a socióloga e mestra em Ciências Sociais Letícia Ferreira Netto para explicar o que é o racismo científico, como surgiu e quais os problemas pode ocasionar na atualidade para as populações negras no Brasil e no mundo.

Ela diz que a revista Nature pegou carona no pensamento de um teórico primo de Charles Darwin: o britânico Francis Galton. Galton, explica a especialista, adaptou a teoria da evolução das espécies do primo para tentar justificar um pensamento de que existem raças superiores e inferiores. Vários artigos de Francis Galton foram publicados pela revista Nature em 1904.

O que é racismo científico?

De acordo com a socióloga Letícia Ferreira Netto, o racismo científico é uma tentativa de utilizar as ciências, o pensamento e métodos científicos para justificar um preconceito: a hierarquização das raças. Ela conta que essa tentativa ocorre na Europa desde sempre e de várias maneiras, seja de forma cultural, religiosa ou comportamental.

"No século 19, como tudo era científico, os pensadores tentavam justificar tudo pela ciência. Eles vão tentar usar os métodos científicos para mostrar o porquê de eles estarem certos. E esse pensamento passa a acreditar que realmente a raça branca é a única raça boa da humanidade. Que ela é a única raça que vai sobreviver. E que é uma raça que pode dominar as outras porque ela é perfeita", explicou.

Racismo científico - Nuthawut Somsuk/Getty Images/iStockphoto - Nuthawut Somsuk/Getty Images/iStockphoto
Imagem: Nuthawut Somsuk/Getty Images/iStockphoto

De onde vem essa linha de raciocínio?

O racismo científico, esclarece Letícia, surgiu no século 19 em um momento em que a ciência tenta justificar diferentes tipos de discriminação entre os povos. Ela destaca que em cada momento da humanidade a população dominante buscou explicar o porquê de se considerar certa em subjugar populações dominadas.

"A escravização negra no Brasil, por exemplo, se inicia com uma justificativa religiosa. Com o tempo, essas justificativas foram ganhando complementaridade. O racismo científico vai ganhando força a partir do século 19 porque existe uma tentativa da Europa de justificar por que as pessoas são diferentes e por que algumas raças (por lá ainda usam esse termo) merecem e podem ser escravizadas. Por que elas podem ter trabalho forçado e ficar tudo bem", disse.

Uma das primeiras justificativas da humanidade para certas diferenças entre os povos, segundo a socióloga, bebeu do pensamento religioso e foi se adaptando até os de hoje. No século 16, por exemplo, o velho continente usa interpretações da bíblia. A especialista lembra uma passagem que fala de uma desavença que um profeta teve com um dos filhos, que acabou com esse filho amaldiçoado por te rido do pai enquanto passava por problemas.

Esse filho amaldiçoado é obrigado a vagar, sair andando sem rumo. A partir dali, ele e todos os seus descendentes seriam amaldiçoados porque ele riu do pai. Então, o que vai acontecer? Acreditava-se que essa maldição iria transparecer na pele, que essas pessoas seriam marcadas. E aí a Europa olha para a África e questiona a cor da pele dos africanos.

Letícia Ferreira Netto, socióloga

A vez da genética

Racismo científico - iStock - iStock
No século 19, os cientistas se voltam para a genética para explicar as realidades díspares em duas linhas de raciocínio
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Somente no século 18, a justificativa religiosa perde força. No entanto, seguem as investigações para entender as razões de as pessoas serem diferentes. As discussões perduram até o século 19, quando, para explicar as realidades díspares, os cientistas se voltam para a genética, e duas linhas de raciocínio passam a ser consideradas: o determinismo geográfico, que diz que o lugar onde a pessoa nasceu vai determinar sua evolução; e o determinismo biológico, que vai apontar para diferenças na estrutura física.

A socióloga lembra que, à época, o italiano Cesare Lombroso começa a falar em antropometria, que seria um estudo das características físicas de pessoas que eram criminosas. O pensador visita 11 penitenciárias, faz medições e determina que as características das pessoas negras se encaixam perfeitamente em um "perfil criminoso".

"Ele entendeu que a pessoa que tem a cabeça muito grande vai ser criminoso. A pessoa tem orelha de tal jeito, até os olhos separados, vai ser criminoso. E começa a justificar com medidas literalmente, centímetros, que o que é considerado normal é bom, e o que é considerado anormal é ruim", ressaltou.

Por que esse pensamento ainda afeta pessoas negras?

Racismo científico - Divulgação/Sindicato dos Professores do PR - Divulgação/Sindicato dos Professores do PR
Alunos colaram cartezes contra o racismo em colégio de Curitiba (PR)
Imagem: Divulgação/Sindicato dos Professores do PR

A construção do preconceito data de muito tempo, assim como o racismo. Letícia lembra que alguns autores vão falar que todas as comunidades da humanidade são, de alguma maneira, xenófobas ou racistas.

Atualmente, se discute mais o racismo no Brasil, segundo ela, porque no país ele vem de uma construção histórica de dominação e de exploração.

"Tem um pessoal que adora o argumento de que as próprias tribos africanas já usavam da escravidão. Mas a gente construiu um sistema econômico baseado nisso, que impediu as pessoas de fazerem qualquer coisa. Muito brasileiro argumenta que não tem racismo no Brasil porque o Brasil é um país miscigenado", diz.

A especialista avalia que o nosso país vive um pensamento positivista, estampado inclusive na bandeira do país, de que é possível falar em meritocracia de maneira generalizada. Ver pessoas negras em cargos de destaque, seja na área empresarial, seja na cultura reforça a ideia de que qualquer pessoa consegue desde que haja esforço.

"E essas pessoas não conseguem, ou não querem, entender que se sentar para estudar em uma favela não é a mesma coisa que se sentar para estudar em Alphaville. Isso continua afetando as pessoas, mas é uma forma de explicar a realidade: você consegue falar dos impactos do racismo na vida das pessoas, mas a ciência não consegue justificar que as pessoas negras são inferiores e por isso podem ser dominadas", conclui.