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Projeto cria ambiente acolhedor para crianças e jovens vítimas de crimes

Espaço destinado ao Depoimento Acolhedor, também conhecido como Depoimento Especial - Divulgação
Espaço destinado ao Depoimento Acolhedor, também conhecido como Depoimento Especial Imagem: Divulgação

Danilo Casaletti

Da Republica.org

20/06/2022 06h00

Ao entrar na sala do Depoimento Acolhedor no Centro Integrado da Criança e do Adolescente (Cica), no Recife, projeto do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), a criança ou adolescente vítima ou testemunha de crimes ou violência se depara, como sugere o nome da iniciativa, com um ambiente hospitaleiro.

Nada da frieza de uma sala de audiência, onde a tensão parece estar permanentemente no ar. Em vez da mesa que afasta e impõe hierarquias à sessão, duas poltronas, lado a lado, na mesma altura, para que a criança seja ouvida na igualdade de condições por servidores que passaram por um curso de capacitação específico para a modalidade —a equipe da entrevista investigativa é formada por assistentes sociais, psicólogos e pedagogos.

"A criança entra na sala e diz: nossa, é diferente do que eu imaginava", afirma Andreia Paiva, assistente social que trabalha no projeto desde 2011, cerca de um ano após sua implementação. Andreia conta que sempre teve identificação com crianças e adolescentes, algo que aflorou ainda mais nos estágios que fez ainda durante sua formação. Ela acredita que garantir os direitos desse público é lutar por uma sociedade mais justa.

"Sempre achei que existiam muitas lacunas nessa área e queria contribuir para minimizar isso. Precisamos avançar ainda mais na capacitação de quem ouve essas vítimas e testemunhas para que evitemos ao máximo a violência institucional", diz.

Tudo o que acontece no espaço destinado ao Depoimento Acolhedor —atualmente, também conhecido como Depoimento Especial— é acompanhado na sala de audiência pelo juiz, defensoria, representantes do Ministério Público e advogados por áudio e vídeo —eles não têm contato com a vítima ou testemunha.

Sala - Divulgação - Divulgação
Detalhe da sala do projeto Depoimento Acolhedor
Imagem: Divulgação

As perguntas dirigidas às vítimas são repassadas à equipe por meio de um ponto eletrônico e, se necessário, reformuladas antes de serem feitas aos depoentes. Tudo com o intuito de preservar ao máximo a vítima e colher apenas as informações estritamente necessárias, sem que ocorra a chamada revitimização.

Andreia lembra que, inicialmente, foi preciso vencer a resistência dos conselhos de psicologia e serviço social —o Conselho Federal de Psicologia (CFP) se posicionou contra a participação de psicólogos nesse tipo de depoimento por entender que a inquirição de uma criança ou adolescente, mesmo com minimização de danos, não elimina totalmente o prejuízo que lhes é causado.

É importante lembrar que os profissionais não fazem um estudo de caso ou avaliação psicológica ou social. Não se trata de um estudo interdisciplinar.

A assistente social chama atenção para um fato: de 2010 a 2021, quase 80% dos casos que chegaram ao TJPE são relativos a crimes sexuais. Outros 2% envolvem lascívia ou favorecimento à prostituição ou exploração sexual. São do sexo feminino 76% das vítimas. Entre acusados, investigados e demandados, 92% são do gênero masculino. Muitos dos casos não têm testemunhas ou provas periciais, por isso os testemunhos das vítimas são tão relevantes.

"Não que os magistrados irão se basear somente nisso. Sabemos que é algo muito mais complexo e maior. Porém, dar esse lugar de fala a elas e ter profissionais especializados nessa escuta, tudo feito dentro de parâmetros científicos e normas vigentes, é garantir os direitos de crianças e adolescentes", diz.

Projeto foi criado em 2010 e se expandiu

O Depoimento Acolhedor foi implementado no Tribunal de Justiça de Pernambuco no primeiro semestre de 2010, inspirado pelo projeto Depoimento Sem Dano, criado em 2003 pelo Desembargador José Antônio Daltoé Cezar, da 2ª Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Foi a iniciativa de Daltoé Cezar que inspirou o projeto de lei de 2017 que tornou o depoimento especial obrigatório em todo o país.

Na época, para a implementação, o Judiciário Pernambucano contou com a parceria financeira estabelecida com a Organização Childhood Brasil (Instituto WCF-Brasil), braço da World Childhood Foundation, criada pela Rainha Silvia da Suécia, que esteve presente em uma cerimônia à época.

Primeiramente, o protocolo aplicado para as entrevistas investigativas do Depoimento Acolhedor era o mesmo elaborado pelo TJRS, desenvolvido pela equipe da psicóloga Lilian Stein. Desde de 2020, a equipe utiliza o Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense.

Só no Recife foram realizados, até dezembro de 2021, 2.491 depoimentos especiais. Depois de sua implementação na capital pernambucana, o projeto foi expandido para outras quatro comarcas de Pernambuco: Camaragibe, Petrolina, Caruaru e Goiana.

'Informações precisam refletir a realidade'

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A juíza Hélia Viegas Silva, coordenadora da Infância do TJPE
Imagem: Divulgação

Para a juíza Hélia Viegas Silva, coordenadora da Infância do TJPE e a primeira mulher a assumir a função no órgão judiciário do estado, em fevereiro deste ano, esse tipo de oitiva protege e evita o constrangimento de crianças e adolescentes.

"Ele é muito positivo, principalmente quando o Depoimento Especial, e essa é a finalidade da lei, é feito em caráter de produção antecipada de prova. Ou seja, antes do processo crime ser formalizado, ainda na fase de investigação policial." A juíza explica que nessa fase de instauração do inquérito policial, a depender da idade ou do desenvolvimento psíquico da criança ou adolescente, o tempo pode apagar a lembrança do fato.

"Por isso, é necessário que a oitiva ocorra em tempo hábil. A vítima tem que ser ouvida o quanto antes, o mais rápido possível. Influências internas não podem modificar ou moldar o depoimento. As informações precisam refletir ao máximo a realidade do fato delituoso", diz.

Cabe, então, ao delegado solicitar ao juiz o Depoimento Especial —o que nem sempre acontece, por conta de prerrogativas. Dessa forma, evita-se que a vítima seja ouvida mais de uma vez, inclusive durante a instrução do processo criminal, como a lei determina.

Esse tipo de depoimento é destinado a vítimas e testemunhas de até 18 anos incompletos. Excepcionalmente, um juiz pode solicitar que um maior de idade seja ouvido dentro da modalidade, se considerar que o caso é muito constrangedor para o convocado.

Ônibus vai aonde não há sala própria

Desde 2018, o projeto conta com um ônibus que visita as comarcas nas quais não há uma sala própria para o Depoimento Acolhedor ou Especial. Do mesmo modo, apenas crianças e adolescentes e os técnicos ficam dentro do veículo. Juízes e demais operadores do Direito acompanham remotamente.

A implementação da modalidade itinerante contou com o empenho do presidente do TJPE, o desembargador Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, especialista em Infância e Adolescência e um dos formuladores do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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Desde 2018, o projeto conta com um ônibus que visita as comarcas nas quais não há uma sala própria para o Depoimento Acolhedor
Imagem: Divulgação

Até novembro de 2021, de acordo com dados do TJPE, 612 depoimentos itinerantes foram realizados em diferentes regiões do estado, inclusive no sertão.

O desafio agora é ampliar as salas fixas do Depoimento Acolhedor, bem como ampliar a cobertura itinerante das áreas onde isso não é possível.

Escuta especializada

A psicóloga Carmélia Mariana Cavalcanti Bastos está na equipe do Depoimento Acolhedor há 10 anos. Ela define a participação do psicólogo em um depoimento em dois principais eixos: o rapport, que na psicologia é a técnica de criar uma empatia com a outra pessoa para que a comunicação encontre menos resistência, e a escuta ativa, que é a dedicação ao ouvir e absorver a fala do interlocutor.

Carmélia dá alguns exemplos do que ocorre nos depoimentos —sem citar nomes ou mais detalhes—, embora confesse que exista algo que ela define como uma "proteção" ao não guardar os casos que acompanha.

Um dos exemplos é de uma menina que havia sido vítima de abuso e, depois de um ano e meio, perdeu a mãe. Não houve o depoimento. "Buscamos o relato livre. Certamente ela traria a questão da morte da mãe e isso iria desorganizá-la muito", diz.

Em relação às perguntas, Carmélia explica como a reformulação é fundamental. Os questionamentos podem, por exemplo, induzir a responsabilização da criança pela prisão de um parente ou conhecido ou causar grande constrangimento.

"Se fosse na sala de audiência, mesmo com o juiz indeferindo a pergunta do promotor ou da defesa, pois a lei impede o constrangimento, a vítima já teria ouvido. Transformamos algumas perguntas para também formar uma prova consistente. Por exemplo: em vez de perguntar 'ele tocou em sua vagina?', perguntamos 'ele tocou em algum lugar?', sem sugestões. Ou se perguntam se ela transa com o namorado hoje em dia, qual a relevância que isso tem para o abuso que ela sofreu?", indaga.

A psicóloga reforça a importância de colher provas com qualidade, para que não haja, inclusive, absolvição por falta delas no processo. "Isso torna tudo mais justo e diminui a impunidade. Não fico feliz em ver pessoas condenadas e presas, mas é preciso frear esses abusos de alguma forma."

Esta reportagem foi desenvolvida em parceria com a Republica.org, organização social apartidária e não corporativa que se dedica a contribuir para a melhoria do serviço público no Brasil, em todas as esferas de governo.