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Sucuri queimada é salva por pele de peixe no Pantanal em caso inédito

A equipe do "Ampara Silvestre" trata sucuri com pele de tilápia - Pedro Beck
A equipe do "Ampara Silvestre" trata sucuri com pele de tilápia Imagem: Pedro Beck

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

16/01/2021 04h00

A sucuri Xamã tinha queimaduras e mordidas pelo corpo. Os veterinários desconhecem a origem das dentadas, mas sabem de onde veio o fogo. Enquanto a cobra era carregada, pelo céu flutuava a fuligem que queimava onde Xamã conhecia como "casa", mas nós humanos chamamos de Pantanal.

Em culturas indígenas, xamã é um líder conectado aos espíritos ancestrais da floresta, e que nela encontra o conhecimento e a cura oferecida pela própria natureza. É comum que xamãs sejam pontes entre humanos e outras espécies, que assumam suas peles e suas perspectivas durante alguns rituais. Graças aos cientistas, a cobra pode ajudar a cumprir parte da função que o nome lhe atribui.

Xamã foi resgatada em um dos incêndios no Pantanal e agora passa por tratamento com pele de tilápia. A técnica é utilizada em humanos desde 2017, mas será analisada de maneira inédita em animais silvestres resgatados com queimaduras, como antas, jaburus e onças. Segundo cientistas, a pele de tilápia funciona como um curativo da natureza que transmite colágeno, protege, ajuda a hidratar e a acelerar a cicatrização da pele queimada.

"Será um caso inédito do tratamento com pele de tilápia em répteis", diz a veterinária Carol Machado, especialista em animais silvestres. Xamã foi encontrado em outubro por agentes do Ibama na beira da Transpantaneira, rodovia estadual considerada como "a porta de entrada do Pantanal". Segundo a Polícia Federal, a origem do fogo no Pantanal é criminosa.

Segundo Carol, a sucuri estava "desfalecida", com ferimentos pelo corpo e com a boca machucada, o que a impedia de comer. Quando foi resgatada, os veterinários da ONG AMPARA Silvestre (saiba como ajudar abaixo) ainda procuravam alternativas para acelerar a recuperação das queimaduras.

A equipe havia recém-testado células-tronco para tratar as queimaduras profundas da onça Amanaci, que teve as patas queimadas até os tendões. O tratamento deu bons resultados, mas ainda era necessário um método para lesões mais superficiais, mas também dolorosas. Foi quando o grupo encontrou estudiosos que usam da pele da Tilápia do Nilo para queimaduras, uma saída natural e gratuita.

Antas, roedores, aves e Xamã foram "envelopados" na pele do peixe. As regiões queimadas começaram a cicatrizar por volta de uma semana, avaliaram os veterinários. Os resultados servirão como relatos para estudos sobre o uso da pele de tilápia entre animais lesionados. Por enquanto, a técnica é experimental.

Xamã tem 2,50m, ainda é jovem e poderá ter três vezes o tamanho atual. As maiores sucuris chegam a oito metros. Além da aplicação da pele de peixe, a cobra resgatada teve 23 ferimentos costurados e recebeu antibióticos contra infecções. O nome de Xamã foi uma ideia da veterinária Carol.

"Ele chegou em um dia conturbado de muitas emergências e foi o último a chegar. Mesmo muito machucado, estava muito bravo, forte. Eu queria que ele tivesse um nome forte, e um dos significados de Xamã é cura", explica. Infelizmente, as feridas de um dos biomas mais diversos e famosos do planeta não são tão fáceis de curar.

Pantanal, nunca mais.

Curativo - Reprodução - Reprodução
Curativo com pele de tilápia usado para salvar répteis vítimas des queimadas
Imagem: Reprodução

A jornalista Juliana Camargo, fundadora e presidente da ONG AMPARA Animal, diz que trabalha com "o que sobrou" do Pantanal atualmente. "Muito do que havia foi perdido e exterminado", explica.

A instituição, criada em 2010, originalmente resgata e cuida de animais domésticos e silvestres, e em 2020 foi para o Pantanal ajudar espécies feridas pelo fogo. Previam ficar alguns meses, como fizeram em desastres como o rompimento da barragem de Brumadinho. Os planos mudaram. O misto de urgência, agressividade do fogo e a falta de organização do governo estimulou a ONG a instalar três bases fixas no bioma, explica Juliana:

"Não tinha nem para onde levar os animais. Todo estado tem uma base deste tipo, mas o Mato Grosso não tem. É uma das coisas mais absurdas. Há negligência, falta de interesse".

Sem apoio do governo, os funcionários da AMPARA são pagos por empresas de áreas do varejo, alimentação, pets e mercado financeiro, enquanto a operação de resgate e tratamento são pagos por doações, de acordo com a presidente da ONG.

Uma vaquinha aberta no início do segundo semestre atingiu R$ 2 milhões e foi usada para construir alojamentos, montagem de UTI móvel, aluguel de automóveis no Pantanal e a contratação de veterinários que, inicialmente, eram voluntários vindos de São Paulo, Minas Gerais e Paraná. A instituição uniu esforços com ONGs da região e também atuou com policiais ambientais, bombeiros, ICMbio e Ibama.

No final de janeiro, a AMPARA deve lançar um balanço de quantos animais podem ter morrido com os incêndios florestais que queimaram 40% da vegetação do Pantanal. A instituição pretende permanecer no bioma e se organizar para as próximas queimadas, que devem se repetir em 2021.

Segundo Juliana Camargo, o esforço coletivo entre ONGs, órgãos institucionais, universidades e doadores é o que pôde salvar parte da fauna. Cerca de 40 animais ainda estão sob os cuidados da ONG, e muitos podem não voltar para a natureza. "O que aconteceu no Pantanal é que os animais foram impedidos de serem livres", diz.

O governo do estado do Mato Grosso diz que faz sua parte. A Secretaria do Meio Ambiente (Sema) afirma que possui dois servidores para fazer encaminhamento de animais resgatados em parceria com a polícia ambiental, secretaria de segurança pública e universidades, com uma média de 50 animais atendidos por semana.

Em nota, a Sema acrescenta que mantém um centro de triagem em Várzea Grande, com 10 recintos, investiu em outro centro em Rio Verde e irá construir outro em Cuiabá, mas sem uma data definida. Ainda não há estudos do governo sobre quantas espécies animais foram mortas no Pantanal.

"Tivemos poucos répteis que sobreviveram, pois são animais rastejantes. Muitos chegavam com queimaduras de terceiro a quarto grau", diz. "Fez toda a diferença ter investido na pele de tilápia", diz Juliana Camargo, da AMPARA.

A pele de tilápia

A veterinária da Universidade Federal do Ceará Behatriz Odebrecht, coordenadora do estudo do uso de tilápia em animais, afirma que o atendimento com pele de tilápia no Pantanal estimula novos estudos, no Brasil e no mundo.

Behatriz ministrou cursos para quem atua no Pantanal, e no meio do ano irá concluir um doutorado sobre o uso da pele em cavalos. "Nós não programamos um estudo pois fizemos a doação para casos de desastres, como fizemos no Líbano [após a explosão que arrasou Beirute em agosto]", explica.

O uso da pele da tilápia em animais ainda não foi observado a nível microscópico, mas veterinários percebem melhoras na cicatrização.

Afinal, o teste em animais não é dos mais fáceis. Diferentemente dos humanos, a fauna não mantém o curativo protegido e limpinho. Em alguns casos, a pele vira comida. Na Califórnia, a pesquisadora Jamie Peyton usou a pele para cuidar de ursos feridos em incêndios florestais. Deu certo, em um dos ursos, que voltou a caminhar. Já o outro, comeu a pele.

"Em um humano, posso deixar o curativo e estudar por até dois meses, ele pode tomar banho, etc. Em um cavalo, é muito difícil. Preciso colocar de um jeito que ele não arranque com uma mordida", diz Behatriz.

Em humanos, os cientistas da UFC testaram a pele de tilápia com pacientes vítimas de queimaduras do Instituto de Apoio ao Queimado, em Fortaleza, e dão como concluído os testes que comprovam a eficácia do curativo natural. A Anvisa ainda analisa a eficácia da técnica, que só poderá ser usada no Sistema Único de Saúde após a aprovação da agência.

O principal desafio da pesquisa é encontrar uma indústria para financiar a produção em larga escala, após a aprovação dos estudos pelas agências reguladoras. A pele da Tilápia do Nilo é cedida por fornecedores da indústria da pesca que, antes, descartavam o material. Por ora, a tilápia é usada como método experimental em centros hospitalares no país.

Xamã

Xamã - Reprodução - Reprodução
A sucuri Xamã, resgatada pela ONG "Ampara Silvestre", com seu curativo de tilápia
Imagem: Reprodução

A veterinária de animais silvestres Samia Coli, de Minas Gerais, cuidou de animais como antas, jaburus e deu banhos em Xamã com água de camomila para aliviar as regiões queimadas, facilitar a troca natural de pele da cobra e remover o curativo feito com a pele de tilápia.

Samia foi como voluntária até o Pantanal, mas acabou contratada pela ONG AMPARA. A veterinária, com 17 anos de experiência, estima ter operado cerca de 130 animais feridos em dois meses de atuação no bioma. Em casos mais graves, as espécies eram encaminhadas para a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Em Minas Gerais, ela trabalha com animais domésticos, mas custeia o tratamento de silvestres que chegam a ela. No bioma pantaneiro, foi apresentada a um mundo colorido de aves como o jaburu (tuiuiú), o graxaim e o gato do mato. Nem todos eram vítimas do incêndio. Em alguns casos, também atendia animais vítimas de caça ilegal. "Chegavam para nós jacarés que sem parte do rabo, pois na caça é uma 'parte nobre' a retirada da cauda", diz Samia

De acordo com Instituto Chico Mendes de Conservação e Biologia (ICMbio), o Pantanal tem 264 espécies de peixes, 652 espécies de aves, 117 de répteis, 102 de mamíferos e 40 espécies de anfíbios.

Após as queimadas recordes e todo dano à fauna, não é claro como os animais, apreciados pelos binóculos de milhares de turistas que viajam até o Pantanal todos os anos, sobreviverão em 2021. Apesar da diminuição dos incêndios, o fogo e a estiagem secaram áreas alagadas, mataram predadores e presas e limitaram as frutas, sementes, raízes, insetos e microorganismos.

Xamã agora está menos abatido. Ele serpenteia pelo recinto onde vive, à espera da volta para a casa. Ainda não há previsão de "alta", pois é preciso adaptá-la novamente ao Pantanal. Já Samia deixou o inferno que se tornou o Pantanal para retornar a Minas Gerais.

"Voltei para casa esgotada, um caco, mas não tem como mensurar o quão grata fiquei em ter ajudado, de ter sido uma gotinha no meio do oceano em um cenário tão trágico", conclui.

Como ajudar

AMPARA — Associação de Mulheres Protetoras dos Animais Rejeitados e Abandonados

Criada em 2010, a AMPARA Animal cuida de animais domésticos e desde 2016 tem uma equipe dedicada a animais silvestres. É possível fazer a doação de qualquer valor no site oficial.

WWF-Brasil

Criada em 1996, a WWF-Brasil recebe e repassa doações para instituições que atuam na preservação do meio ambiente no país. Há um canal específico para doações, a partir de R$ 35.

Ecoa - Ecologia e Ação

A instituição trabalha diretamente no território do bioma do Pantanal. A ONG existe em 1989 e dá capacitação, sensibilização e preservação do meio ambiente para a população local. Qualquer valor pode ser doado no site da instituição.

SOS Pantanal

Elaborada em 2009, o Instituto Socioambiental da Bacia do Alto Paraguai (SOS Pantanal) promove campanhas, oficinas e sensibilização entre grandes empresas e população para a preservação do bioma. Para doar, é preciso telefonar para o número (67) 3042- 9095 ou enviar e-mail para financeiro@sospantanal.org.br.

Instituto Arara Azul

Voltado exclusivamente à preservação da arara azul no Pantanal. Fundada em 2003, tem sede em Campo Grande e é a principal instituição para conservação da espécie no país. No site, é possível comprar camisetas, acessórios ou doar qualquer valor.