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Brasileiros na Austrália arrecadam alimentos para comunidades no Brasil

A #lembradecasa arrecadou dinheiro na Austrália para comunidades carentes no Brasil - Divulgação/Lembra de Casa
A #lembradecasa arrecadou dinheiro na Austrália para comunidades carentes no Brasil Imagem: Divulgação/Lembra de Casa

Natasha Bin

Colaboração para Ecoa, de Miami (EUA)

27/12/2020 04h00

"Eu escolhi sair do Brasil, mas sou grata às minhas raízes". É com essa gratidão que a terapeuta Emilie da Silva Stradtford, 41, movimentou a comunidade brasileira na Austrália e arrecadou mais de 100 mil reais para a compra de cestas básicas, destinadas a famílias carentes no Brasil.

Morando em Sidney há 15 anos, a paulista criou o projeto #lembradecasa, com a proposta de convidar expatriados a ajudarem a mudar o cenário da fome no Brasil. "Todos que somos brasileiros e estamos fora de casa, não podemos pegar um avião para voltar. A ideia foi mostrar como a gente se conecta com Brasil sem estar no Brasil. É uma campanha de gratidão e honra às nossas raízes".

Alimentando a ideia

A brasileira tomou a decisão de criar o projeto depois que seu pai adoeceu durante a pandemia. "Quando meu pai se recuperou, eu pensei 'preciso fazer alguma coisa como forma de gratidão'". A ideia tomou forma quando a terapeuta se deparou com os dados divulgados pelo IBGE sobre a fome no país. Segundo o relatório publicado em setembro, 10,3 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar grave, número que subiu em 3 milhões nos últimos cinco anos.

Propondo a arrecadação de verba para a compra de mil cestas básicas, o projeto #lembradecasa foi lançado em novembro via plataforma de crowdfunding.
"Sugerimos a doação mínima de 25 dólares australianos, que para gente é o preço de uma pizza grande, mas que no Brasil compra uma cesta básica que alimenta uma família de quatro pessoas por pelo menos duas semanas", explica a idealizadora.

Com uma equipe de 13 voluntários alocada na Austrália, desafios não faltaram. Além do fuso horário com 14 horas de diferença, a logística também pesou. "Seria muito mais fácil para o projeto mandar o dinheiro direto para o Brasil e ter acabado ali, mas nós tivemos o cuidado de selecionar as ONGS e de planejar as entregas, pensando em como chegar nas áreas onde não passam caminhões, por exemplo", conta Emilie.

Para a escolha das ONGs, a organização selecionou projetos em três dos quatro estados em que a fome é mais crítica, segundo os dados do IBGE: São Paulo, Bahia e Maranhão. E como o slogan da campanha era "cada centavo vira comida para o Brasil", outro desafio era fazer com que o custo da operação não 'comesse' o valor arrecadado.

"Para diminuir custos de entrega, a gente tinha pensado em contratar um caminhoneiro, mas aí descobrimos que carga de comida no Brasil é preciosidade, é uma das cargas mais saqueadas. Então, tivemos que buscar uma empresa que fizesse as cestas e pudesse entregar de forma gratuita no Brasil inteiro", explica a idealizadora, enfatizando que a equipe negociou o valor das cestas incansavelmente.

Na base da confiança

Lembra de Casa - Divulgação - Divulgação
Equipe do projeto #lembradecasa
Imagem: Divulgação


"Logisticamente, nós somos um grupo na Austrália chegando para a empresa sem um pedido de compra com CNPJ, já que nós não temos ONG ainda. Foi na confiança, a empresa teve confiar e rodar a produção antes de termos o dinheiro", diz Emilie.

Outra pedra no caminho foi a variação cambial. No início das arrecadações, em 13 de novembro, o dólar australiano valia cerca de R$ 4. Ao final de três semanas de campanha, a moeda havia caído para menos de R$ 3,80. "Toda diferença de dólar eram cestas que a gente poderia perder no caminho". Para evitar perdas, a equipe do #lembradecasa contou com o apoio de uma empresa brasileira de corretagem cambial que "segurou o câmbio" no patamar do início do crowdfunding.

Um prato cheio de saudade e empatia

No total, a campanha arrecadou 28.300 dólares australianos, o equivalente a quase 110 mil reais. O montante rendeu a compra de 1282 cestas básicas, ultrapassando a meta inicial de mil unidades, e vai mudar o Natal de mais de 5 mil pessoas.

A brasileira Nathália Atademos foi uma das mais de 400 pessoas que doou para o projeto. "É muito gratificante ver conterrâneos se unindo para trazer um pouco de alegria a tantos lares no Brasil. Jamais esquecemos nossas raízes e a importância de retribuir ao país que nos deu base para o que somos hoje". Há quase nove anos na Austrália, ela se identificou logo de cara com o projeto.

Com gostinho de saudade e empatia, a campanha recebeu doações de expatriados que vivem na Austrália, amigos e empresas de brasileiros, mas também de quem mora em outros países, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Holanda. O rompimento das fronteiras é sinal de que a iniciativa tem potencial global, conectando comunidades brasileiras ao redor do mundo. Há pelo menos 3,1 milhões de brasileiros vivendo no exterior, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores.

"O que a gente abriu agora foi uma porta para as pessoas que moram fora e que não conseguiam imaginar como elas poderiam ajudar o Brasil. A gente deu a chance de elas pensarem 'eu posso fazer um pouquinho'", afirma Emilie.

Entregas

Entregas de cestas básicas arrecadadas pelo #lembradecasa - Divulgação/Lembra de Casa - Divulgação/Lembra de Casa
Doação de alimentos arrecadados pela #lembradecasa
Imagem: Divulgação/Lembra de Casa


As cestas foram distribuídas entre os projetos de forma proporcional ao mapa da fome do IBGE e contemplaram cinco instituições: Projeto Bantu, de Vera Cruz (BA), Comunidade Paulista, de Paratinga (BA), Projeto Mandingueiros do Amanhã, de São Luís (MA), Projeto Estrela do Natal, de Guaianases (SP) e as comunidades assistidas pela equipe do Padre Julio Lancellotti, de São Paulo (SP).

A distribuição às famílias está sendo feita pelas ONGs, enquanto a equipe da Austrália acompanha tudo por vídeo. "Como é que explica a sensação de estar fazendo um negócio desses aqui do outro lado do mundo? Eu pude ver o sorriso no rosto de uma pessoa no meio de uma quilombola. Qual seria a chance de eu estar numa comunidade quilombola fazendo isso? É muito lindo!", emociona-se ao contar sobre uma das entregas realizadas no Maranhão.

Por esse motivo (e toneladas de outros), ela diz que a continuidade do projeto é uma realidade. E o próximo passo já está dado: a equipe do #lembradecasa iniciou o processo para o registro da ONG no Brasil e na Austrália. Para as campanhas futuras, a aposta é na união entre as comunidades brasileiras de expatriados espalhadas mundo afora. "Brasileiro não é bom em tudo, mas a gente se junta pra tudo. É o que sabemos fazer de melhor. E se juntar para uma causa boa é uma honra".